O luar empoalhava indistintamente as porções daquém e dalém de Sandalcalo (1). O Forte velho (2) recebia a sua quota parte do negrume no seu dorso de ameias rotas e torres desmoronadas.. Mas aquele Forte velho não conseguia sorrir àquele morena carícia do luar porque ele (o luar) o fazia mergulhar na saudade do antanho, de deboches e patuscadas : homens barbudos brincando ao luar com diáfanos trajes de baianas (3) lindas…
Dizia-se que, uma noite, S. Jerónimo tremera no seu nicho acabando por implorar de
N. Senhora do Mar (4) vista grossa para aquelas garotadas (5)… Por isso, o Forte de S. Jerónimo em noite de luar se tornava um desenho a crayon … (6). Aos pés dele o rio semicerrava os olhos ao peso daquele luar farináceo.
Xilú ajeitou o cigarro espraiando o olhar pelo lugarejo inundado de luz. O cabedal do cinturão do Xilú apertava o corpinho magro e das calças de caqui emergiam pernas esquálidas. Ena ! Mãe Santiss ! – devaneava Xilú: “como eram moles os lábios de Anica ! Será que toda a mulher tem assim ? Quem sabe!”
Doutro lado do rio Sandalcalo, Xilú distinguiu o escaler e os vultos do Dr. Juiz e do barqueiro Calpá. Não podiam ser outros. Se o marulhar das águas não fosse tão forte , as vozes deles viriam claras até ele! Hum!…Xilú visualizou mais do que viu : Calpá segurando o barquinho com uma mão enquanto estendia a outra para o magistrado se apoiar e fazer-se à terra, tartamudeando saudações em português enquanto o Juiz manobrando um saltinho de menino travesso, punha-se em terra agradecendo a Calpá em guzerate.
Já farto de perscrutar a outra margem, fez uma reviravolta e virou-se pela esquerda, quando os seus olhos, aliás alheados , pousaram sobre um objecto rectangular, escuro sobre o pavimento da esplanada. Abaixou-se para apanhar aquilo. Mãe Satiss ! Uma carteira! Carteira de pele de cobra! Mãe Santiss, quem não conhecia aquerla carteira ? Todo o Damão a conhecia! Os dedos toscos de Xilú passaram com relutância sobre a pele pintalgada. Mãe Satiss! Há por tão lindas carteiras e o Dr. Juiz com essa de pele de cobra! Shi ! Cobra! Mão larga para dar! Fraco por mulheres ! Santo Deus, quem não era ?! Ele, Xilú, sabia-se lá o que faria com uma carteira sempre recheada ? Aahn ? Primeiro que tudo não teria que adiar e mais adiar o seu casamento com a rapariga mais bonita de Damão. O que fora que a sua Anica dissera da última vez? Ah, assim : “Xilú, minh’ vid, pacience tá no fim, hom !”
Nosso casamento nunca mais chegando … Em ouvindo aquilo ele ficara tonto de tristeza, inventando desculpas, entremeando beijos e outras brincadeiras. Depois ele tivera de se afastar dela bruscamente, porque ela era uma labareda e não estava certo … não estava certo! Apenas correndo levemente seus lábios nicotinados sobre a lisa pele do braço dela, Xilú fizera uma paragem sobre o dedo anelar garantindo:
“Este dedinho vai ter um anel p’ra o mês que vem…”
Nada! A vida era chata ! O que mais doía era a certeza dessa estreiteza. Apre ! – Vá , exame para promoção. A gente fica velha só de pensar naquilo. Vidinha deles ! (Nós) rasos logo na primeira semana, o ordenado já no fim! Economizar o que ? Mas porquê esperava ele ? Não! Nada! Entregaria a carteira no dia seguinte ao Dr. Juiz.
Não havia dúvida que ele a perdera de caminho a Portas-Fora. Quem havia que não estava ao facto das andanças nocturnas do Dr. Juiz ? Sorriu ao pensamento íntimo que o fazia (ao Juiz) acamaradar com o resto de homens indistintamente de tal categoria social. Apalpou com asco a carteira achada. Desta vez abriu-a cauteloso. Sempre a andar, preparou o seu espírito para achar na carteira algumas cédulas (notas) e muitas fotografias de mulheres …nuas! Jogou fora a beata dos lábios e parou indeciso. É que tinha na mão uma carteira literalmente cheia ! Na primeira divisão, alguns papelinhos que pareciam recibos dos CTT… Nenhuma foto de mulher núa, uma estampa de Nossa Senhora do Mar . E noutra divisão uma porção de cédulas de mil escudos. Caramba! Uma, duas três, oh muitas! Tanto ganham eles ?! E tudo para espatifar com mulheres … Na sua mente surgiu, sem ele a evocar, a figura do Dr. Juiz escondido atrás da grade do terraço da sua residência, aguardando pacientemente as moças que iam para o bazar, espreitando-as através dos rendilhados da grade. –Psichut… pschchut … E Violante, uma garota, prima da Anica, vindo a correr com a sua mão sobre o seu jovem busto pujante:
– Xilú, Xilú! …
– Que há, Violante ?
– Xilú, aquele peste do Dr. Juiz … chamando gente, mostrando notas de dinheiro… Ele o que julga, ahn ?!
De facto o Dr. Juiz era uma boa pessoa, mas aquele assédio às moças da sua terra deixavam Xilú em suspense… E se um dia ele lhe põe os olhos na sua Anica ? Oh, nunca! Xilú vivia há quase um ano preso a um sonho ! Martirizado por um amor que tinha a frescura e pujança do rebentar de plântulas nos prenúncios da monção. Mãe Santiss! O Juiz seduzir Anica ? Oh! Nunca!… Jogou fora esse pressentimento, mas ele ficou na mesma pesando no seu coração como um coágulo violáceo… Sempre caminhando chegou ao posto fronteiriço, à casa da Dona Bulina. Safa! Uma carteira com tantas cédulas de mil escudos e a sua Anica precisando só de uma para os arranjos do enxoval! E ele não podendo arranjar essa miséria ! Sempre arranjando ‘mantras’ :
– Oh, sabe ? Anica meu bem, a gente investe nos seguros da vida, É pra o nosso futuro…
Que vergonha ! e estendia-se num lençol.
O luar continuava namorando o Sandalcalo que, felinamente, se torna prateado. Danada noite! Tão bonita que até se escutava a sua voz no espraiar das águas em cadência do embalo : árias que os búzios da praia de Beuca iriam gravar. Bonita noite!, (tão) clara que deixava ver os peitoris das janelas da Dona Bulina. Mais além , a ponte desmoronada com um pedaço a faltar … Eh, podia bem ser o retrato da alma do pracinha pedindo um remendo ao Destino… Ao longe, o Hotel Brighton e o cajuari solitário elevando ao céu as suas palmas como braços humanos implorando…
Sexta feira : mais uma noite e lá viria a leva de bebedolas de Bombaim, Mãe Santiss, mascando areca , rindo por tudo e nada na euforia das aguardentes que ingeriam … Tudo engolindo indistintamente: whisky, brandy, Macieira …
– Ena! O velho era capaz de sair à rua em uma noite assim ? Quem poderia ficar dormindo na cama ? Diabo carregue com ele, (e ) com o tenente Catanas, maluco varrido, descarregando suas frustrações em humildes como ele, Xilú… :
– Ó oito! Isso é ronda ? Põe-te a andar, pateta!…
Continuou andando com a carteira do Juiz na mão. Agora na casa de D. Bulina ouvia-se o piano. Continuou patrulhando rumo à horta de Mukerji. Rondas não se fazem parando, embora aquele luar lhe perturbasse a cabeça abrindo mil oportunidades com os dinheiros do Juiz… Tudo silencioso, nem sequer o barulho da Central Eléctrica ! Só o cão do Dr. Naik ladrando como um estafermo. As botas do Xilú no asfalto da Estrada buliam com a noite, aliás empenhada em receber calada a avalanche da Luz …
Quando pequenino ele ia ao balcão do Manekeji brincar com os netinhos. As janelas da Mafaldinha pareciam pestanejar, não podendo aguentar com o luar. Em casa da Mafaldinha ouvia-se o piano também.
Xilú daria a carteira lá pelas onze horas quando o magistrado estivesse de caminho ao Tribunal. Não era conveniente abordá-lo assim a pequenas horas quando ele regressava das suas noitadas …
Sempre com o pensamento na sua Anica, acabou por abrir outra vez a carteira de pele de cobra …
Mole, de amor, puxou de uma cédula de mil escudos, nova, limpinha, pô-la de encontro ao poste eléctrico e, sacando da sua esferográfica desenhou a um canto dois corações atravessados por uma seta rubra … Coração dele e da Anica, a rapariga mais bonita de Damão, de anquinhas redondas e busto rijo. Pô-la de nova na carteira.
Noutro dia:
– Doutor V. Exciª teria perdido esta carteira ?
– Moço, mas isto é inacreditável ! Não pergunto onde a achaste … Olha! Toma lá isto …(retirando de uma das algibeiras das suas famosas calças a Príncipe de Gales, uma cédula de mil escudos).
Estendia-a para Xilú sorrindo. Xilú estava tentado a aceitar. O que havia ? Enxoval … Anica! (Irra! Ele era na verdade fidalgo, nem abrira a carteira para acertar no conteúdo!)
Ouviu a sua própria voz… Não doutor, não posso aceitar.
– Não se importe, Dr. Juiz… Ás ordens!
Despediu-se do meritíssimo com uma continência militar e um sorriso de missionário…
À tarde:
Botas reluzentes e farda engomadinha entraram na cozinha de Anica. Ele, Xilú, não tivera tempo para as primeiras brincadeiras… Anica, eufórica, forçara o cerco dos seus braços e correndo para o quarto de dormir viera para Xilú estendendo-lhe sorridente uma nota de mil escudos, novinha, novinha, com um desenho de dois corações a um cantinho:
– Tome, home, pra comprar nossa roupa… Que havia ?
– Não, nada !
Aquela cédula do Juiz aí, nas mãos da sua Anica ?
Algo precioso, frágil e delicado na alma do pracinha, se partia naquele momento … Não podia pensar. Jesus! De um momento para outro ele era um farrapo humano… Levando as mãos à cabeça , articulou:
– Ai a minha cabeça! – E largou a correr deixando Anica perplexa, com a cédula de mil escudos na mão!
Não se lembrava como fizera a travessia.
A tarde punha cortinas de oiro no Golfo de Cambaia, tingindo o horizonte de profusos tons de oiro de açafrão. Xilú não queria sofrer, mas a dor era persistente. Ela vinha da mão da Anica com a cédula de mil escudos … Ela andara enganar Xilú só por causa de umas rendas … (7) Ai a vida! Iria até a ponte partida e seus pés autómatos, em vez da ponte, dirigiram-se à praia…
Calpá estava aí trabalhando no seu escaler. Calpá saudou-o:
– Sabe ? Isto não está bem. Tem um rombo. Por isso fi-lo à praia. Agora é tarde! Não se pode arranjar … fica para amanhã. Na água é que ele não pode ir!
Afastara-se pela esplanada para o bairro deles, dos maxins . Xilú, cor atono (sic) assentou-se na borda da proa do escaler, indiferente, mole, um tanto tocado pela sumptuosidade desse ocaso no Indico …
Aos poucos os muros da praça na outra banda do rio cobriram-se de uma mortalha e Xilú ouviu ragas sem fim da bicharada nos silvedos … Quanto tempo Xilú ficou aí ? Nem ele sabia. Uma voz conhecida (ouviu-se) muito perto dele:
– Calpá! Onde andas ? Depressa, pá, leva-me a outra banda … Que sorna me saíste, Calpá!
Xilú pusera-se de pé. Ele, o Juiz, ele em pessoa, aí estava em carne e osso! Esse comedor de donzelas de Damão, esse depravador, estragador da sua felicidade. Porquê esperava ? Porquê não seguira ao rio ?. Para mais o rio (não) estava caudaloso … Porquê esperava ? ‘Tome home para comprar nossa roupa’ (8)
O Juiz aproximara-se.
– Ahn, és tu moço ? O Calpá é um maricas. Garanto que teve medo do vento. É , temos tempestade! Moço, ajuda-me a pôr isto na água e o resto faço eu …
Xilú devia dizer do rombo ?
– O mãi, nunca! Não sou home para…
Empurrou o barco para o rio. O Juiz saltou para ele, depois pegando no remo e espetando-o na margem, como tanta vez já vira fazer, deu impulso ao escaler que deslizou na água .Xilú estranhamente aliviado, não reparou no furacão que varria a praia de Nani-Daman. Quase que não podia ter-se em pé , tal era o vendaval. Já um tanto encharcado alcançou a estrada. No hotel do Francisco estavam os bebedolas divertindo-se. Um vendaval insano varria Damão-Pequeno. Xilú fustigou o passo.
-Deus não dorme!
Deus ia fazer justiça! O escaler levaria ao fundo quem não merecia estar à face da terra!
Como passou a noite ? Nem ele saberia dizer. Contrariamente à sua expectativa, aquela noite, absolutamente tempestuosa, com relâmpagos, trovoada e chuva, o Sandalcalo inchado no seu dorso, fazendo correr uma água terrosa com toros de madeira e cocos vãos, o Sandalcalo furioso, trouxe calma ao coração ferido do pracinha:
– O rio , ele está engolindo aquele viciado…
Na manha seguinte:
– Xilú! A Senhora quer falar consigo – berrou o ordenança do Palácio.
– Mãi Satiss ! A esposa do Governador! Ia dizer o que toda a gente sabia, menos ele … Que parvo! Tanto tempo no engano! Nunca mais queria saber dela, desgraçada, prostituta!…
Subiu a escadaria do Palácio não sabendo por que os tijolos levitavam em planos diferentes. Cumprimentou Dona Maria com uma continência militar e ficou estático , imune à provocação exterior : sua mente visualizava calças a Príncipe de Gales boiando com cocos vãos na praia de Deuca…
– Olhe, moço, você está noivo daquela rapariga Anica que nos ajuda na costura, não é ? Ora bem! Nós abrimos um fundo para ajudar moças noivas. Já demos à sua noiva mil escudos, porém se achar que é pouco, é dizer lá na secretaria , ouviu ?
Xilú fazia girar o bivaque entre os dedos e seus lábios recusavam palavras. A Senhora continuava:
– O Dr. Juiz é quem cotizou mais : trinta contos limpinhos.
O enorme xadrez do lajeado do Palácio formava uma belicosa parada militar e as biqueiras polidas dos sapatinhos da Senhora Dona Maria João seriam canhoneiras, apontadas para o seu magro peito. Ele percebera direito ?….. Ahn, ele percebera direito ?
Outra vez, Dona Maria João:
– Está ouvindo, moço ? O senhor Governador quer a viatura às doze em vez das nove … O Dr. Juiz passou cá a noite, veio encharcado que nem uma esponja; imagine aventurou-se a fazer a travessia sozinho sem o homem do escaler …
Xilú tinha ouvido direito ? Tudo certo ? Ahn ? Ouviu sua própria voz:
– Às ordens, Minha Senhora!…
Uma manhã esplendorosa nascera no coração do pracinha.
Aldonã, 19/9/1986
Nota: Texto recuperado pelo académico Paul de Melo e Castro (Univ. de Leeds). Fixação do texto por LR.
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(1) – Rio que separa Damão Grande do Damão Pequeno.
(2) –Forte de S. Jerónimo (1614).
(3)- Mulheres pertencentes provavelmente à casta dos Banianes.
(4)- A igreja assim denominada fica situada dentro do Forte
(5) – Passar por cima de, desculpar aquelas boémias.
(6) – Foram omitidos dois termos ilegíveis.
(7) – Anicas ganhava uns dinheiritos ajudando na costura as Senhoras do Palácio. – ler adiante no texto.
(8)- Xilú ficou transtornado com a súbito aparecimento do Dr. Juiz, recordou-se das palavras que Anicas proferira.
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