Quem é esta Portuguesa ? Direi sem mais preâmbulos que é Edila Gaitonde, mulher do nacionalista goês Pundolika Gaitonde , Médico-cirurgião formado em Lisboa e primeiro deputado nomeado para o Parlamento Indiano , após a anexação de Goa à India.
Em Nov. de 2011 veio a lume pela Editorial Tágide, e com o magnífico Prefácio do Prof. António Manuel Hespanha, o livro de Edila, sob o título ‘As Maçãs Azuis – Portugal e Goa ( 1948-19612) O lançamento do livro foi em edição bilingue: inglês e português. Na edição portuguesa, em nota, agradece a Autora à sua Amiga Manuela Pinto da Costa “pelo seu valioso apoio e colaboração no trabalho de tradução deste livro” (p.5). Não é meu intuito apreciar criticamente o livro, coisa que o ilustre Prefaciador, em pouco mais de página e meia, fez numa síntese lapidar. Aqui, a sua perspicaz análise , com uma visão global do percurso da vida do casal Gaitonde e sobretudo da personalidade da Autora, encontra no seu breve texto uma expressão elegante .
O nome Gaitonde era já conhecido em toda a Goa, já eu estava na altura em Goa que deixaria para ir a Roma tirar um curso superior. Lembra-me que uma senhora de Salsete, de elevado estatuto social, não se fartava de elogiar a competência do cirurgião pois ela fora operada por Gaitonde no Hospital particular do Dr. Olavo Ribeiro em Mapuçá (outro concelho) a pedras nos rins , e a senhora as mostrava a todos como relíquia. Da esposa do Dr. Pundolika , Edila, portuguesa açoriana, apenas ouvira que dava aulas de Música e piano e que era formada pela Escola da Música do Conservatório de Lisboa. Em nossa casa onde a música era muito apreciada, esse grau académico incutia respeito. Foi precisamente nesta fase da vida do Dr. Gaitonde quando ele se encontrava na ribalta como professional bem sucedido, que ele, e por tabela a sua esposa, se lançam na via agitada da política. Todo o decorrente e sinuoso percurso do Dr. Gaitonde é descrito por Edila e cito as palavras do Prefaciador –‘ numa narrativa despretensiosa , quase cinematográfica (que) nos vai guiando, com leveza, ironia subtil e abertura de espírito…’ (p.8). Acho que realmente ‘abertura de espírito’ é a palavra-chave que desvenda a extraordinária personalidade desta mulher portuguesa. Logo no cap. 1 , Edila afirma que ela “Era a primeira mulher portuguesa, católica, que casava com um hindu e tinha escolhido ir viver para India, para o seio do seu povo. Os ideais políticos de Lica (marido) e a filosofia da sua vida passaram a dominar toda a minha existência” (p.9). Acabando de ler ‘Maçãs Azuis’ que para mim foi um livro ‘page turner’, apreendo a verdade daquela afirmação de Edila. Uma católica portuguesa, europeia, casar com um hindu, vestir o sari para se dar nas vistas em ocasiões protocolares, no tempo português, balbuciar umas palavras em vernáculo – tudo isto não é novidade nem implica pioneirismo . Pioneirismo é assumir os valores doutro país como igualmente válidos: os seus hábitos e maneira de ser, arte e língua – valores culturais enfim , como não inferiores aos padrões ocidentais. Ora isto no tempo de Edila nunca , homem ou mulher de Portugal, vivenciou. Escolho de entre os momentos mais significativos da sua biografia este da chegada de Edila, de Lisboa ao aeroporto de Bombaim, ela, jovem recém-casada com um indiano de Goa, ávida por conhecer este país exótico e seu povo. Certamente Pundolika teria aberto os olhos da sua mulher europeia para o cenário que ela havia de defrontar, que seria muito diferente do de Portugal. Ora acontece que no dia em que o jovem casal aterrou de avião , o aeroporto de Bombaim e vasta zona do Marashtra haviam sido assolados por um violento ciclone. Em consequência, o aeroporto estava quase às escuras, iluminado por luzes a petróleo. Todo o trajecto do aeroporto para a residência fora aos trambolhões de carro, e às vezes tinham de andar com os pés na lama. Palavras de Edila: “Estava verdadeiramente fatigada depois daquela esgotante viagem … Só me dava vontade de chorar com dor do meu desapontamento…”. Faz-me lembrar, a mim , como fará certamente aos leitores da minha geração, o desapontamento que a heroína do famoso romance da escritora sueca Sally Salminen ‘Vida inteira de Katrina’ sentiu ,quando chegou à Aland, ilha do seu marido. O homem tinha pintado à noiva a sua ilha com cores tão brilhantes que até as maçãs seriam azuis… A caravana dos familiares de Lica que viera ao encontro do casal no aeroporto tagarelava descontraída, chapinhava na lama sem se importar . Para a jovem noiva Edila ficada atrás, aquilo seria demais: “Quando chamei por Lica, ele voltou-se para mim e disse em português: Tem paciência, não te posso ajudar, o que diriam se te vissem encostada a mim ? Olhei para frente quase em lágrimas. Ganhei coragem e continuei…” (p.28)..
Estando em Bombaim, o casal foi convidado para um jantar em casa de Hari Porobo, amigo do marido: “Entrando eu em casa de Hari fui conduzida à sala onde estavam reunidas as senhoras … Eu olhei para elas, juntei as mãos num silencioso namastê e sorri também. Como as mulheres não falavam nenhuma das línguas que eu conhecia, não percebia a língua que elas falavam. Fiquei ali a sorrindo enquanto elas falavam. De vez em quando olhavam para mim e sorriam. E eu sorria também. E fui sorrindo, sorrindo…” (p.40-41). Poderá parecer simplório e apalermado este comportamento de Edila mas é que ela estava apenas tomando o pulso à situação e pessoas, palpando o ambiente onde ela teria que viver. Sirva-se como prova estas palavras de Edila:
“Sempre me intrigou que, embora se dissesse que o racismo era inexistente em Portugal, nunca tivesse existido contacto entre portugueses e nativos hindus. Não havia um único português que falasse a língua da terra ou qualquer outra língua indiana e a ignorância da cultura indiana era quase total.” (p.86) No decurso da sua narrativa, Edila , ao mesmo tempo que põe em relevo a figura do seu marido, primeiro na sua actividade de médico e em simultâneo, como empenhadamente nacionalista,, não encobre que não ficou de braços cruzados à sombra do seu marido, mas fez uso da sua especialidade académica para granjear nome e autonomia não só em Goa como em Nova Deli e Londres.
Que Pundolika Gaitonde, já cirurgião pela Escola de Medicina de Lisboa, regressou a Goa junto com a sua esposa portuguesa, e tinha como fisgada, a intenção de se lançar na política nacionalista para libertar Goa do regime de Salazar, é uma verdade. Esta intenção esteve bem vincada mesmo durante a sua actividade profissional em Goa. Tornou-se portanto uma peça fulcral na máquina do Partido do Congresso Nacional indiano no governo, para derrubar o colonialismo português na India e naturalmente um alvo da PIDE . O seu relacionamento com então cônsul da India em Panjim facilitou-lhe o acesso às grandes figuras políticas indianas e a uma posição estratégica na luta pela independência de Goa. Escreve Delila: “Naqueles anos de difícil interacção era para mim sempre um grande prazer visitar os Mehtas. Ashoka era nessa altura o cônsul-geral para a India em Goa. Chandraleka, a mulher, era filha de Vijayalakshimi Pandit, então presidente da ONU, e sobrinha de Nehru. Senti-me sempre bem com eles. Era como se fossemos da família. Os Mehtas tornaram-se grandes amigos nossos e pela vida fora sempre continuámos a ver-nos, ora em Nova Deli, ora em Paris, onde Chandraleka teve o primeiro bebé» (p.49) . A estratégia diplomática lançada por Gaitonde para o reconhecimento da ‘Organização Nacionalista das Colónias Portuguesas’ a nível da ONU, teve um fim abrupto por razões várias e circunstâncias imprevisíveis (repressão do movimento em Angola, perigo da China no norte da India, eleições etc ). Houve neste cenário pressões por parte duma facção politica indiana para uso da força. : a India invadiu militarmente Goa e apossou-se dela em Dez. de 1961. Não julgamos que este desfecho violento estivesse no intento de Pundolika Gaitonde. Ácerca da sua ligação sentimental a Portugal desabafa Edila com a sua costumada limpidez: “Lica sempre gostou dos Portugueses como povo com o mesmo sentimento que tinha pelos seus conterrâneos e queria ver os povos em perfeita igualdade e sem se ferirem mutuamente. Enquanto um continuasse a dominar o outro, nunca seria possível haver dignidade pessoal nem tão pouco respeito mútuo” (p.74)
Estando Edila em Londres em Dez. de 1961,já ouvira na rádio a notícia da iminente invasão de Goa pela tropa indiana e logo, para seu alvoroço, recebe o telegrama lacónico do marido a informar: ‘Goa está livre – Beijos. Lica”. Na manhã seguinte já se encontrava no aeroporto de Heathrow com a sua malinha na mão com o destino Goa, para um abraço triunfal a Lica. A descrição do regresso e como atravessou a fronteira de Goa, então encerrada pela tropa, afigura-se um mise en scène cinemático. Gaitonde era homenageado junto com outros patriotas, ‘freedom fighters’ num giganteco comício em Mapuçá. Um mar de gente separava Pundolika de Edila que o queria abraçar esfusiante. Certamente Pundolika quereria ter ali no palco a seu lado a sua esposa portuguesa que sempre o acompanhara ao longo daqueles agitados anos. Quereria que os goeses patriotas o vissem assim. Mas, como em Bombaim, o que diriam se o vissem encostado a uma portuguesa precisamente neste dia em que se celebrava a expulsão dos colonizadores portugueses ? Termina Edila:
“Ali permaneci, profundamente emocionada,numa comunhão de pensamentos com o povo. E, furtivamente, enxuguei uma lágrima persistente que me escorria pelo rosto”.
Leopoldo da Rocha
Fevereiro 23, 2012 às 10:22 am |
Onde encontro este livro? Obrigado
Maio 15, 2012 às 10:27 am |
Comprei o livro, desconhecendo a autora mas atraido pelo titulo e pela “cor” das macas ! Gostei da historia que me pareceu retratar bem as duas culturas. Fi-lo chegar a Londres `a minha herdeira que adorou e me perguntou onde poderia encontrar a versao em ingles para oferecer. Onde posso encontrar a versao em ingles ?