‘Klara e o Sol’- uma premonição sinistra ou o fim do ‘Humano’

Maio 6, 2021

Com precedência de  meses, foi  saudado  com  uma orquestração  concertada, altamente laudatória, nos grandes órgãos da imprensa anglo-saxónica (New York Times,The   Atlantic , The Guardian etc. ) o  livro ‘Klara e o Sol’ do escritor britânico de origem japonesa, Kazuo Ishiguro.

No auge do seu poderio colonial, o Reino Unido dominou meio-mundo e deixa uma herança cultural ímpar: a língua inglesa que agora é língua franca à esfera planetária. Com subtileza, a Inglaterra levou para a ribalta, no campo de letras e humanidades, escritores doutras raças que se serviram do idioma inglês  para  maior divulgação dos seua textos. Eles tornaram-se depois  nomes sonantes e cito  a título de exemplo: Tagore (R. Takkur), Radhakrishna, Naipaul, Wole Soyinka, nigeriano. No caso vertente, o japonês Ishiguro é   uma singulariade esquisita.  Nascido em 1954 em Nagasaki (Japão), veio com os pais para Inglaterra quando tinha 5 anos. Aqui se radicou, cresceu e fez os estudos superiores  tendo  apenas ido de visita passageira à  sua terra natal passados 30 anos.

Num entrevista ele afirmou: ‘Eu não sou inteiramente  inglês  porque fui criado pelos meus pais japoneses falando japonês em casa. … (mas) tenho um ‘background’ distinto. Penso de modo diferente, as minhas perspectivas são um tanto diferentes’.   Em 2017  Ishiguro foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura e a citação diz  : ‘por ter retirado (=   ’uncovered’) um pouco do  véu  ao abismo  por detrás do nosso ilusório senso de conectividade  com  o mundo’.  Julgo que esta perspectiva  teimosamente persistente, já  revelada  na novela   ‘Never Let Me Go’ (2005) e outros escritos,   ressurge agora no módulo idêntico  de ficção científica distópica.   ‘Never…’ é  um mundo fechado de ‘clones’ e a narrativa, em primeira pessoa, parte    de um elemento do trio de  ´clones’ (Khati)  bem consciente de  que o seu fim e doutros clones está  iminente. Em ‘Klara e o Sol’ a narradora,  também em primeira pessoa, é um androide denominado  AF (‘Artificial Friend’). ‘Klara…’ em  figurino,  traz-me à memória o  embrião-chimera (parte mumano, parte outra espécie ,  recentemente criado num Laboratório de China pelos cientistas. No embrião deste tipo apenas 1 célula humana, em cem mil,  vinga. E mesmo assim, é  pouco  claro qual o contributo da célula humana para o desenvovimento daquele organismo criado no laboratório chinês. Para o leitor pouco familiarizado com a ficção científica acho bem apresentar  a moldura onde  se desenrola a acção da novela de Ishigura.  Esta moldura encontra-se  desgarrada, não é linear ,fragmentada em pedaços da memória de ‘Klara’, uma boneca androide, tamanho natural para uma ‘teen-ager’ de treze  anos.  No início da compra  o ‘manager’ do armazem  quisera  impingir o modelo mais aperfeiçoado de AF (B3), mas  houve  uma atração misteriosa de Josie ( menina pálida) por Klara  (AF-B2).

Klara is packed and sent to Josie’s house’ – a partir deste momento começa a narração algo  linear pela voz de Klara. O cenário onde se desenrola esta ‘estória’ surrealista é  algures na Amércia, num futuro não muito distante.Um sítio campestre, ermo, com  casas dos amigos de Josie  localizadas  a   quilómetros de distância e  convívio  nulo.   Esta Amérca está rigidamente estratificada. Por um lado uma sociedade  endinheirada que se  serve para os trabalhos de rotina  unicamente de ‘robots’, e por outro lado uma camada de operários descartados por causa dos  ‘robots’, a  viverem em  solidão e angústia. Há Universidades para  élite para as quais  podem candidatar-se apenas  alunos com alto quociente de inteligência. Por isso, os pais das famílias ricas, para garantir o futuro  dos  filhos, procuram educá-los não em escolas  convencionais, mas em suas casas , recorrendo a um processo chamado ‘lifting’.  É um processo pelo qual aquelas crianças  são ensinadas  via smarthphones e deste modo são geneticamente modificadas (ou ‘lifted’). Ou melhor, para me servir das palavras de um crítico: ‘lifting’ é um termo à Pangloss para designar edição genética, feita para aumentar o grau de inteligência ou ao menos para melhorar a performance académica’. Quem comanda a operação não fica bem claro. Mas certo é que o processo de ‘lifting’ envolve potencial de  alto  risco para a saúde da criança. Não descobri este detalhe   na retórica das  ‘book-reviews’ que passaram por mim,  com exepção de  uma onde alude a um eventual acto cirúrgico (talvez na face).

A mãe de Josie, mulher problemática , fundamente  egoísta, já perdera a sua filha mais velha,  precisamente devido às consequências do ‘lifting’ a que a jovem fora submetida. Encontrou o substituto  na filha mais nova, Josie.  Mas muito em  breve esta  jóvem  daria  sinais de que algo não corria  bem com a saúde. É nesta altura que a mãe ‘tarada’ de Josie leva a filha para o tal armazém para comprar aquela boneca androide, para fazer  companhia à  filha. Estas bonecas são no aspecto exterior semelhantes ao ser natural. Não se alimentam, porque são androides. A sua energia é unicamente derivada do Sol,  dos raios solares.   Falam, atúam, reagem a modo humano, mas até um certo limite porque  a  programação ainda não chegou aí.A ‘sensibilidade’ de ‘Klara…’ por exemplo, ainda não atingiu o grau do ‘humano’. Mas o poder de ‘observação’ de’Klara’  e a axpansão da análise  é espantosa. De quando em quando os ‘lifted’ têm uma reunião periódica para acertar os progressos de alta aprendizagem via smartphones’ dos ‘tutors’ que se revezam. Isto ocorre em casa de Josie, com ‘Klara’ e Rickie pesentes. Este Rickie é o único verdadeiro e leal  amigo de Josie. É um ‘barra’ em construir ‘drones’ e muito inteligente mas infelizmente não pode  entrar nas tais Universidades de élite porque não é lifted. A sua família também é problemática.  Acontece que neste convívio (dos ‘lifted’, com anormal sexo  à mistura) os convidados lifted começam a gozar (‘bullying) o coitado do Rickie, bem como a androide ‘Klara’. Klara rememora tempos, depois deste episódio, com secura e melancolia. Não denota  sentimento algum  (‘zero-feeling’) de ter sido gozada. É prova de como o ‘feeling’ de ‘Klara’ ainda não atingira o ‘humano’.

Estando ‘Klara’ em casa de Josie a fazer-lhe companhia com extrema dedicação, a mãe de Josie pede a Klara que a acompanhe para ver uma ‘cascata’ num parque. Diz que  Josie pode ficar em  casa sozinha porque está muito fraca…  Klara acede, a contragosto, e foi nesta ocasião  que ‘Klara’ ( que intuíra o problema de Josie), encara o Sol e pede-lhe que cure Josie em  troca da sua própria  vida. Josie ‘outgrows’ e ‘Klara’ é recambiada para o ‘store’. Ela relembra que o Sol foi muito bom para ela. ‘Klara’ relaciona o que Josie uma vez em conversa lhe dissera: que o AF ( ‘Artificial Friend’) é diferente,  que ela (josie) e Rickie, seu leal amigo, vão ficar juntos para sempre.

Julgo que é altura para eu fazer algumas observações à volta desta narrativa surrealista. É verdade que a ficção científica pode lançar novas fundações, que pode implicar que os tradicionais cânones literários sejam arrasados. Ishiguro tem subliminares mensagens válidas. Tem também rervira-voltas quixotescas como aquela de Klara se dirigir ao Sol numa súplica de oração. A (AI = Inteligência artificial) robotizando um sector da sociedade vai criando um hiato de desigualdade atroz e estados de solidão e agústia. Isto pode acontecer também na chamada élite ‘lifted’, com a agravante de, nesta camada, já se esboçar o surto de competição entre os ‘lifted’ mesmo.

‘O ‘feeling’ de ‘Klara’ é ainda incipiente. Conseguirá a AI  replicar o atual ‘feeling’ humano e outras emoções, como o sentimento de beleza, amor…?   A AI , no seu passo veloz, recentemente invadiu já o campo sagrado da Vida. A engenharia molecular e a  experiência conseguida na China.  com o embrião humano (no Occidente está proibido), causa-nos uma apreensão sinistra e um arrepio. Como pôr o travão a isto e que consequências daí advirão ?

Não quero alongar-me mais. Fecho os olhos e abro um livro que trago à minha mesinha de cabeceira. Encontro lá uma ‘pagela’ (=um santinho), que eu comprara no Vaticano, na segunda metade do século passado, numa impressão ‘glossy’, muito linda : imagem de uma simples flor , talvez uma margarida que agora brotam nos terrenos. Como legenda, este verso do bardo místico Indiano: Tagore. Cito-a  de cor, no belo idioma, de  sonoridade estupenda , o italiano, que amo. Diz a legenda: ‘I tuoi secoli, Signore, succedono senza posa per rendere perfetto anche un piccolo fiore selvatico’.

‘Secoli per rendere perfetto…’ ? Agora,  a engenharia molecular em plena força pode  replicar aquela flor com a rapidez de quem carimba uma maço de cartas. O incidente traz à memória o episódio do Génesis:  de Adão, Eva e Serpente .

Haja Deus e Ele guie o porvir do Homem.

Maio de 2021

Leopoldo da Rocha

Até quando ? ( ou algumas ideias sobre a chamada ‘identidade dos Goeses’)

Fevereiro 20, 2021

Este título assim, avoca para os conhecedores dos clássicos latinos o famoso exórdio    de Cícero no  seu discurso  contra Catilina (1ª Catilinária). ‘Quousque tandem…’  Até quando ? – dissera o tribuno. Mas no meu texto que  segue, não há invetiva de espécie alguma, não se censura ninguém. Apenas passo a  refletir  sobre uma realidade  que diz respeito à chamada identidade goesa, realidade  que, para mim,  tomou vulto à medida que vou atingindo uma  idade bem avançada.

Muito se escreve sobre esta identidade e entre os escribas há   quem  pertença  a  gerações que tiveram contato direto ou indireto com Goa enquanto  colónia de Portugal. Os Goeses que mourejaram na diáspora:  na Europa, América e outros recantos do mundo estão, sentimental ou umbilicalmente  ligados à Goa. Vê-se o registo disto nos ternos obituàrios que aparecem nas redes sociais como Goan Voice . Leio por exemplo: faleceu fulano , ‘beloved husband of X (ex- Kenya), doting grandfather of Y (Australia)… .    Sentirão as  gerações novas   esta atração, ou Goa pouco ou  nada lhes diz ? No Reino Unido, as garações   lá nasciadas   e que vão crescendo, estão-se marimbando para a situação sócio-política e económica da terra dos seus antepassados. Eles esforçam-se é mas por  se afirmarem  ‘british’. Nos Estados Unidos e países da diáspora dos Goeses a situação é pior. Os Goeses sempre formaram comunidades  fortemente  coesas , àparte o  virus atávico da casta (entre eles próprios !) como amplamente regista a história dos clubes dos goeses  na Africa Oriental por exemplo. Os valores que eles haviam herdado  dos seus progenitores, no meio de  família cristã, prática religiosa e   moral inculcada pelo clero  , não encontram suporte  no ambiente dos E. U. que é um cocktail de  raças, religiões, etnias e culturas  diversas  e   liberais . Imaginemos um jóvem de pura cepa goesa cristã  que entra naquele país para prosseguir os seus estudos . Trava amizade com um colega americano   e este o convida para a festa que vai dar o seu pai. Este pai vai festejar o seu casamento com a segunda mulhar, depois de se ter divorciado da primeira, mãe do amigo americano. Curioso é que o estudante  americano  faz o convite ao seu colega goês  com uma naturalidade espantosa…Qual será a reação anímica  do jovem estudante goês ? Ora é nos E.U. que este tipo de goês há-de sentir-se solitário e identitariamente alienado. É    na América mais do  que em qualquer outra diáspora  que o Goês perde a sua identidade sócio-cultural e  abraça  uma outra, muito vaga – já o reconheceu Benegal Pereira,   filho do anti-colonialista , Eddie Pereira.

Se no meu tempo, após  a anexação ( e uns oito anos que se seguiram), o pôr-do -sol lusitano teve algum embate, foi, quando muito, em uma ou duas gerações. O futuro da comunidade goesa deve-se analizar a partir dos Goeses (hindús e cristãos) que  estão  e continuam a viver em Goa. Considero este elemento , o  ‘core-identity’ vital.

Reconheço que com a anexação de Goa e  consequente  abertura sua para a grande India, a pequena comunidade de Goeses que dantes estava insulada  que nem num forte , contra ventos (culturais) vindos da India vizinha, sentiu o abalo em várias frentes do campo  : administrativo, socio-cultural e evidentemente político. Aponto, a título de exemplo, a língua falada  : o concani. Já na altura esta língua começava a ser  expurgada pelos cultores deste idioma, dos termos desnecessários  do português que tinham invadido o seu léxico. Lembra-me que o douto editor do diário ‘A Vida’, Pedro Correia Afonso, escarnecia o palavreado clerical que recorria com  frequência nos púlpitos  a  expressões como ‘tó vortotá’ etc.

Relendo o ensaio ‘Identity, Exile and Literature in Goa’ do escritor marata Vishram Gupte  (a quem fiz referência em meus ‘posts’ anteriores), àparte a sua notória aversão à ‘singularidade dos Goeses’,  constato no capítulo  do seu ensaio ,‘Literature as a coping (sic) mechanism’, afirmações que merecem ser consideradas. Assim, as suas afirmações sobre as línguas vernáculas em Goa, como concani e marati, são dignas de atenção e reveladoras. Fica para já comprovado que o concani está a evoluir quer em ficção como em poesia a par da produção em língua marata. A diferença linguística é pois implicitamente reconhecida pelo escritor marata Gupte.

Pena é que os cristãos goeses tenham uma   quáse alergia à escrita devanagárica para o concani.Também tenho verificado, como outros meus conterrâneos, que os Goeses com cultura que venham  de Goa numa abordagem com os seus patrícios, teimam em falar em inglês e não em concani. Aqui haverá um complexo difícil de entendimento.

Goa já ganhou o estatuto todo a nível  político como Estado dentro da India. Mas o problema da identidade ainda fervilha.Há algo não satisfeito. Bem disse o citado escritor marata Vishram Gupte: “ O dilema da identidade goesa … foi lançado cinco séculos atrás quando os Portugueses puseram os pés no solo de Goa. Ele tem assombrado a casa-Goa desde então” (= ‘it has haunted Goa ever since’).

Leopoldo da Rocha

Sobre a singularidade da ‘diáspora Goesa’ – breve nota

Janeiro 27, 2021

Evelyn Waugh , escritor britânico, novelista de reconhecido mérito, no século passado, gozara  umas férias   em Goa em 1952  a convite,  discreto ,  do governo português. Também eu estava em Goa na altura e acompanhei as glosas que se faziam na imprensa  local ,algumas delas absolutamente ridículas, como esta de o moço do hotel adular  o ilustre hóspede e o seu familório ( seis filhos)  , dizendo que os seus livros eram muito lidos em Goa.

 Lidos ?  Waugh,  como novelista era um ilustre desconhecido em Goa. Lembra-me um finalista do Seminário de Rachol muito meu amigo  que tinha em pouco apreço  a literatura  portuguesa, mas   era muito ligado à inglesa. Ele mencionara para mim,lá  uns anos após a  Independência da India, o nome de Evelyn Waugh como integrando o ciclo literário nascente  do chamado ‘romance católico’.  Este sacerdote era  avis rara na órbita da cultura clerical de Goa  de então.

A menção de Evelyn Waugh vem aqui à baila   por causa  de uma  afirmação  que ele fez no diário  londrino Time (Mar. 24, 1954), após a sua estadia  em Goa. Escreveu  Waugh: ‘Deve-se notar que, onde quer que os Goeses se encontrem, quer na África ou India, eles formam comunidades orgulhosamente independentes e exclusivas’.

Julgo que  o contexto epocal que Waugh tinha na mente , remontava para  o  fim do século XIX e anos seguintes, quando os Goeses prestaram relevante serviço ao  Império colonial Britânico na África Oriental e deste modo, indiretamente, ajudaram aquelas colónias  agora   países independentes. Encontro   uma bela  prova para a afirmação de Waugh no seguinte ‘post’ de Tony de Sá  para Goa-Net   de Abr. 2020. O  ‘post’ intitula-se  : ‘ Goan Clubs – The view from Moshi ‘. Moshi fazia parte da  então  Tanganyka. No geito de Waugh,  também  Tony de Sá revisita Moshi .  Recorda Tony :  “Tínhamos um  Club chamado Associação Goesa. Fora no princípio uma construção de  madeira, no terreno doado (pelo município ou governo). Esta construção deu lugar a uma outra de pedra e cal. Um dia, um Hindú de Goa de nome Molu Desai,  que era originário de Cuncolim, entrou no Club para   solicitar  a sua inscrição como sócio do Club. A  Comissão de gestão do Club ficou com a cabeça à roda. Nunca ocorrera uma situação destas. Todos da nossa Comunidade trabalhavam na ilusão de que todos os Goeses eram católicos. Molu Desai foi aceite a contragosto (= was relunctantly granted membership). Mas Molu Desai tinha já o  cartão de sócio do ‘Hindhu Gymkhana’ onde ele se sentia mais à vontade. Molu Desai trabalhava para a   Polícia de Tanganyka’.”

Refiro um outro facto histórico que elucida, e bem, o exclusivismo dos goeses, como também a tendência deles para adoção,  à outrance, do figurino occidental nos eventos e celebrações  sociais. O local é Hubli situado numa área geográfica próxima de Goa, no atual estado de Karnataka. Em 1901 o governo britânico escolhera aquele sítio para ‘Railway Junction’, um Entroncamento, onde se cruzariam várias linhas férreas. Havia necessidade portanto de  instalação de oficinas para esta rêde. No recrutamento do pessoal, os Goeses e Anglo-Indianos levavam  preferência por serem proficientes  na língua inglesa. Entre os Goeses que para lá foram ,  quatro tiveram a ideia de criar uma associação para convívio . Era o passo usual da  génese dos Clubes Goeses que surgiram na India e diversos continentes do mundo. Os Anglo-Indianos em Hubli, tinham o seu Club. Os Goeses ostentavam deste maneira  a sua curiosa singularidade apesar de nenhum dos membros, mesmo no período de grande progresso, saber  um mínimo do  português. A decadência do Club de Hubli começou quando as novas gerações das famílias goesas lá radicadas, assim que tiveram  a instrução escolar ou universária abalaram para outras partes.  Se no período de maior progresso lá havia trezentas famílias goesas, em 2010 viviam lá dificilmente trinta. Um artigo no jornal Times of India (21 Dez. 2010) intitulava-se : ‘ Jingle-bells go silent at Goan Institute’. O artigo é da autoria de Vincent D’Souza. Se se tem presente que pela quadra do Natal toda aquela área vibrava de esfuziantre alegria para comemorar o Natal com eventos, jogos, danças e bailes,  compreende-se o patético espectáculo que aguardava   um nostálgico.

Segundo depreendo   dos relatos da escritora Selma Carvalho,os Goeses sentiam  orgulho,  no Kenia  e outras colónias da África Oriental,  em serem tratados com estatuto distinto, em relação aos Indianos. Não eram chamados ‘bloody  Indians’, ‘coolies’ , pelos colonizadores . As escolas fundadas pelos Goeses eram só para eles. Os Indianos por sua vez tinham as suas, consoante as etnias . Ainda no campo desportivo, os Indianos  formavam parelha  contra os Goeses (“The Gujratis and Punjabis pitted against Goans” (‘Diaspora’  por S. Carvalho, p. 97).

A migração dos Indianos para a África Oriental, Zanzibar como primeiro contacto, coincidiu quáse simultaneamente  com a dos Goeses. Por isso as duas Comunidades estiveram unidas em parcearia de negócios ( oficinas  de gelados, lavandarias, alfaiatarias, lojas de retalho, sapatarias etc). As delegações oficiais eram em conjunto. Esta relação de cordialidade   havia de desaparecer  à medida que as duas comunidades cresciam  em número. Os Goeses solidificavam-se na área do serviço público, a comunidade Indiana  na área comercial. Porém  segregaram-se.  Emergiram tres classes distintas demarcadas pela religião , afinidade política e lealdades diferentes : Hindús, Muçulmanos indianos e Goeses cristãos.

Embalada pela preferência que a potência colonizadora  dispensava  e apoiada nas muletas de Portugal ( afinal  os Goeses eram cidadãos portugueses) , a comunidade goesa vivia alienada em relação  ao cenário político  que se ia projetando para Goa. Embora a grande maioria fosse favorável ao ‘status quo’ de então, havia um escol de intelectuais  abertamentre hostil à Goa  como colónia (Eddie Pereira, Pio Gama Pinto, Fritz de Sousa etc.). Neste contexto merece ser conhecida a figura,com ‘low profile’, de J. M. Nazareth. Este viera para Kenya, de Bombaim. Goês, cresceu em Bombaim e formou-se em Direito pela Univarsidade de Bombaim com a classsificaçõa de  ‘first class first’, e medalha de ouro do St. Xavier’s College. Em Kenya  ele esteve um tanto retirado do convívio dos   Goeses e dos eventos  sociais. Era um homem do seu trabalho como jurista , no círculo de poucos que partilhavam as suas ideias. Teve a honra de ser nomeado o  segundo Asiático para o ‘Queen’s Council‘ britânico  e   foi Presidente do ‘Congresso Indiano Queniano’.  Compreende-se que a sua facção   fosse favorável à Goa-India . Mas esta  era contrabalançada   por outra facção  pro-Portuguesa denominada G.O.A. (Goan Overseas Association) chefiada por A. C. L. de Sousa.

Nazareth, autor do  livro  ‘Brown Man, Black Country’,  deixou por escrito estas palavras:  “O Goês em mim recuou muito para trás, e o Indiano projetou-se para a frente. Eu podia  identificar-me só como Indiano porque Goa era uma mancha  desconhecida, quáse invisível,  no vasto mosaico da Índia’.

Ano Feliz 2021

Leopoldo da Rocha

Breve roteiro da língua concani poscolonial

Dezembro 20, 2020

Como autor deste texto, não sou  um ‘outsider’ em relação ao assunto abordado, pois nasci  e cresci em Goa, falei e até   preguiei  sermões em concani em quase todas as igrejas de Salsete. Tenho bem presente a  movimentação que nasceu  no círculo da Igreja cristã  de Goa em prol da língua concani. O erudito e homem de grandes  virtudes, Padre Vasco do Rego, destacou-se como força motora  para a tomada de consciência  da língua concani como língua da terra. Já se discutia na altura que tipo de escrita seria mais consentânea. Eu concordava   com o douto Padre Rego em como o devanagárico era a escrita ideal. Para ser franco, intimamente, eu era um cético. Para mim o concani não passava  de ‘spoken language’  e de um dialeto do marati, língua que  muito gosto . Há testemunho disto no meu livro ‘Casa Grande’, no capítulo ‘Libertação’ , à p. 60 seg.  Mas desde então, muita água correu no Mandovi e muitas voltas deu Goa!

Após a Libertação ocorreu o Ato Eleitoral em 1963   para se decidir o futuro político de Goa que,com a ocupação pela União Indiana, tornara-se  ‘Union Territory’. Ganhou o Partido ‘Maharashtra Gomantak Party’. Tomei parte no  ato eleitoral na  freguesia da  Raia de Salsete. Só ‘post factum’ é que os analistas reconheceram que, com o pêso dos ‘Bahujans’ apadrinhados pelo empresário Bandorkar, a balança pendera para o lado do Maharashtra G. Party. Na agenda deste partido incluíam-se duas  metas: a) reforma agrária b) incorporação de Goa no vizinho estado Maharastra. A primeira finalidade  ia de encontro ao anseio da grande massa  socialmente desfavorecida  : manducares versus proprietáros (‘landlords/mundkars) e outros. Uma vez no poder, MGP satisfez este desiderato (‘Land tenancy act’, escolas etc.). Apressou-se de seguida em cumprir a segunda meta quando surgiu enorme   agitação   e o Poder Central obrigou o governo local a recuar e recorrer ao Plebiscito ( a  favor ou contra a incorporação). Formaram-se dois polos: o partido MGP ia favor da união de Goa com o Maharashtra, alegando a identidade de cultura pois o marati era muito usado como meio de cultura entre os hindús e o concani como simples dialeto para comunicação oral ; o outro partido (United Goan Party) opunha-se à união alegando que Goa tinha singularidade única e o concani era língua diferente do marati.  Ao longo da história colonial houve, sim,  medidas abertamente opressoras do concani mas foram medidas pontuais de governantes tolos. Isto àparte, concani  nunca teve apoio político  do governo português.

Após grande turbulência, a união (‘merger’) de Goa no estado vizinho foi rejeitada no ‘Opinion Poll (1967)’, por maioria. Faltava agora Goa obter o estatuto político dentro do quadro dos estados federais da India. Ora em 1956 tinham sido reorganisados os estados indianos na base linguistica. Na altura,  Goa ainda continuava  sob o domínio português. O  estatuto de Estado para Goa, pois, pressupunha a detarminação da   língua. Em 30 de Maio  de 1987,  Goa foi declarada Estado, com autonomia, dentro do quadro da India, e o  Concani,  escrito em devanagárico, como língua oficial. Esta restrição não agradou ao  elemento cristão que queria também o concani escrito em romano.

Do lúcido e substancioso  ensaio da autoria de Kyoto Matsukava , com o título “ Konkani and ‘Goan Identity’ in post-colonial Goa,India”  recolho duas citações suas  que fizeram luz no meu espírito e abriram clareira para a linha do meu discurso. A primeira citação refere Pramod Kale . Este ensaista tem a seguinte originalissima  intuição : no Tiatr (dos goeses em Bombaim) podemos descortinar elementos do que se pode considerar como Goan Catholic ethos. A linguagem utilisada para os tiatr,  para os diálogos, teve desenvolvimento espontâneo e tinha muito pouco a ver com o Concani Hindú  de  Shenoi Goembab.

Outro autor citado por Matsukava é  Alexander Henn (‘The becoming of Goa’ – 2000). Afirma Henn: “É em parte devido à dominação de Portugal que Goa resultou no mapa como entidade geográfica distinta. A Libertação foi um movimento importante para reinvenção de Goa que perdera Portugal como referência cultural”.

Precisamente esta simbiose resultante é o anátema do escritor marata oriundo de Nagpur e que aterrrou, faz anos, em Goa,  Vishram Gupte.

A colonização de Portugal em Goa durou quatro séculos e meio. É obra! Esta presença tão duradoura  não  podia não deixar a sua marca, o ‘brand’ , no psique ou ethos de uma pequena comunidade, comparativamente ao ‘mare magnum’ da população do Maharashtra. O ‘tiatr’  que Kale aponta é um dado paradigmático.  Outro dado é  a notável contribuição que os Goeses Cristãos deram à obra colonizadora da Grã Bretanha na África Oriental cujo  retrato terno e fidedigno  foi colhido pela escritora goesa Selma Carvalho nos seus livros.

O escritor marata, referido, Vishram Gupte,no seu ensaio em inglês, para mim,  mal refinado :   “ Identity, Exile and Literature in Goa” dá mostra da sua  ignorância(ou má fé)  e falta de rigor analítico quando aborda a contribuição de Portugal a  Goa, após uma presença que foi multissecular. Para simples amostragem , eis um sub-título ao longo do reaccionário texto de Gupte: ‘Goa : A locale in need of Reinvention’ Este termo ‘locale’ ( como ‘plumb the idea’) encontra-se repetido ad nauseam  no seu escrito. Pelos vistos, o que o autor pretende transmitir é o que na crítica literária moderna se denomina por  diegese. ‘Locale’ para ele é a maldita ‘Golden Goa ‘, de Goeses (cristãos e hindús)  com a fixação no tempo histórico português, no ethos, cultura e sociabilidade. Estes   Goeses têm portanto uma visão  etnocêntrica, xenófoba, com impulso atávico para ostracizar (=’othering’) quem não seja  de Goa. Esta visão está patente em toda a produção literária de autores goeses , em concani, marati e inglês. De Português nem se fala. Não existe nem existiu …

Alguns escritores goeses de língua inglesa que Gupte menciona, repetem o que para ele é  a cantilena do  antigo figurino e deste modo pretendem pôr Goa no mapa internacional do turismo dando relêvo ‘à espúria harmonia lingúistica e religiosa’ (sic). Muito havia por criticar no texto  de Gupte, mas a limitação deste Apontamento não permite me alongue mais. O leitor que queira ir mais além , deve recorrer  à fonte. A Internet está disponível a isso.

Natal de 2020

Leopoldo da Rocha

Os ‘kudds’ dos Goeses em Bombaim – notas à margem

Novembro 26, 2020

Este assunto de ‘Goan kudds’  acha-se tratado  não apenas em artigos soltos como até em ensaios  académicos. O meu apontamento, quando muito, tocará  os pontos que me são sensíveis porquanto  dizem respeito ao  meu tempo.  A instituição ‘kudd’ configura ‘um tempo’  que existiu  e as pessoas sobreviventes  que são deste tempo são  poucas ,  como o autor destas linhas . No início da segunda  década do século passado encontrava-me  eu a  passar as férias em Londres . Na arena política fervilhava   o tópico  de Goa-colónia. O saudoso diretor de Heraldo de então, Álvaro de Santa Rita Vaz, meu parente, havia-me enviado, a meu pedido,  uma credencial constituindo-me  correspondente do seu jornal em Europa. Não havia qualquer  intenção política ao que eu   não tinha competência alguma. A vantagem era  transporte e outras regalias. Aproveitei aquela oportunidade para entrevistar o então embaixador de Portugal no Reino Unido,o Dr. Pedro Teotónio Pereira que teve  a gentileza de me  convidar para um almoço na sua residência .O embaixador organizava na altura, uma regata ,  e eu fiz dela tópico para uma crónica para o  ‘Heraldo’ de Goa que foi depois publicada.

Pouco tempo depois, estando eu na zona East-London, uma pessoa amiga, inglês católico praticante , deu-me boleia para eu visitar o famoso Tilbury Dock .Disse-me ele que eu iria conhecer  conterrâneos meus de Goa. Tilbury na altura ainda continuava a ser o grande porto terminal para navios de passageiros. Era o porto de entrada e saída de emigrantes e imigrantes. Grandes Companhias de navegação como  P.& O. utilizavam as várias instalações que Tilbury oferecia. Antes de me encaminhar para um paquete que iria  largar,e tinha no sector da cozinha  pessoal goês,  o meu guia mostrou-me  um pequeno cemitério –se bem me recordo. Ele indicou-me uma lápide alusiva a tripulantes goeses que morreram no mar  durante a Grande Guerra. A lápide tinha esta  inscrição  comovente: ‘E Ele veio para eles caminhando sobre as águas (palavras do Evangelho). No navio fui apresentado ao butler, o  mordomo da cozinha.  Era um goês de Salsete  que   foi de grande  cortesia   para mim. Lembra-me ter indicado com  um gesto  dois  moços atarefados em preparar   ‘sandviches’. Disse-me: ‘Está  a ver ali  aqueles moços de Goa. Vieram  trabalhar aqui por intermédio dos seus ‘kudds’.

 Lá  está ! O que são então estes ‘kudds’ ? O termo ´kudd’ em concani falado de  então  conotava  um ‘galinheiro’.  O conceito de ‘abrigo’ está pois insinuado. Há outros significados que não interessam por agora. ‘ Grosso modo’, por fins do séc. XIX e primeiro quartel de século passado, a falta de emprego para  a população cristã sem terreno  próprio para  cultivo, obrigava os pais ou filhos dessas famílias a sair para fora de Goa em  busca dum emprego para sustento. Bombaim era a grande metrópole  onde podiam tentar a sorte. O primeiro ou primeiros que arranjaram  acomodação, um abrigo num prédio, mediante uma pequena renda, aliciaram outros da sua aldeia a fazerem o mesmo. Outras aldeias seguiram o exemplo. Viviam em comunidade, tipo dormitório, sob o compromisso de pagar a renda estipulada. Esta  clientela  era de  pouca ou nenhuma literacia. Não lhes faltavam dons naturais e disso dariam  prova   quando surgisse a  oportunidade.  Os ‘seniores’ dos kudds, no espírito de camaradagem,  orientavam os recém-vindos para conseguir  emprego ou trabalho remunerado. Num  artigo de síntese,  na rede Goanet, da pena de Roland Francis, intitulado “ The Kudd life in Bombay’ (08 de jul. 2020) leio que, o pico destes ‘kudds’  chegou a   450  , com o epicentro  em Mazagão, Dhobi Talao e Chira Bazar. Só o ’Jer Mahal Estate’, um complexo de seis prédios albergava 23 Kudds , cada um identificado pelo nome da aldeia.

Destes,  devem existir agora   menos de um terço  , e  mesmo estes se encontram  à beira de extinção. Os  moços que eu vi na cozinha , no paquete  em Tilbury,  deveriam  pertencer à  última vaga  dos que recorriam a um  kudd pois estava-se em 1957 por aí. Gerações muito anteriores eram da camada iletrada ou com rudimentos  aprendidos nas escolas paroquiais.

O figurino destes dormitórios  era quase idêntico. Um grande salão onde alinhavam ao longo das paredes, malas de latão. Este seria o sítio onde podiam estender a sua esteira para dormir à noite.  Era permitido apenas uma mala etiquetada com o nome de dono. No escrito referido,   afirma-se   que os pertences  ou as tais malas de latão, eram apenas identificadas pelos primeiros nomes dos possuidores como  ‘Noel, Freud, Wilbon’ (sic). Sendo assim, estamos  no tempo post-português porquanto estes nomes eram desusados na época colonial.

  No fundo do salão havia um oratório com o santo ou  o padroeiro  da aldeia.  A presença  para a  recitação do rosário, às 20 h., era obrigatória, sob pena de incorrerem em castigo como lavar as casas de banho, regar o ajardinado etc.

A decadência ou inexorável extinção da instituição  ‘Kudd’ , tão goesa, é compreensível. A situação sócio-económica após 1961  mudou  muito em Goa. O nível da instrução básica cresceu  imenso  abrangendo especialmente os estratos sociais mais desfavorecidos no tempo colonial.  Das famílias  que tinham recorrido ao ‘kudd’ , décadas de anos atrás,  por assim dizer ‘com pé descalço’, agora as novas gerações  sentiriam humilhação  proceder de igual modo.  Também seria  irrisório porquanto  a  oferta do emprego hoje exige  outros critérios. A viagem de Goa para Bombaim e vice-versa  é  rápida por via terrestre e aérea. Os goeses que conseguiram trabalhar nas Arábias e regressam para umas férias na sua terra natal, e queiram fazer uma escala em Bombaim certamente não irão visitar um ‘ kudd’ da sua aldeia  porque nenhum membro da sua família, se calhar, lá estará a viver.

Relativamente à situação legal dos  ‘kudds’  deve  ter-se  em conta que estas pessoas coletivas se  regem  pela lei de arrendamento. Os  representantes  estão perante a lei  a título de  inquilinos, não como  donos. Estes ‘kudds’, do tempo colonial português,ficam assim  sujeitos  à forte pressão  do mercado imobiliário. Alguns estão por isso envolvidos em litígios judiciais. A agravar a situação o número de  membros residentes naqueles ‘dormitórios’ desceu assustadoramente. Segundo o referido artigo de Roland Francis: O club de Pondá em Jar Mahal que contaria no seu rol 400 membros, em 1995 tinha apenas 20 membros residentes … Acontece o mesmo com outros ‘kudds’ . A falta de  receita em  quotas e as urgentes despesas de manutenção dos decrépitos edifícios tornam o problema de difícil solução.

Para terminar : em  fontes documentais a meu dispôr , escritas em  inglês-indiano, da autoria de goeses, verifico  que a figura ‘kudd’ é sistematicamente identificada como ‘Goan club’. Ora atenta a origem, semântica  e funcionamento destes ‘kudds’ ao longo das décadas,  ‘kudd’ difere dum ‘Club’.  Pensamos desenvolver este aspecto noutro apontamento.

Leopoldo da Rocha

‘On transgender’ e um episódio similar em Goa do meu tempo

Novembro 10, 2020

O assunto em epígrafe foi-me inspirado por um  artigo, sugestivamente  ilustrado, que eu  li  numa revista desportiva anglo-americana. Faço agora  ideia   do espanto que deve tomar o  rosto de certos leitores ( goeses) , puritanos e complexados, por me verem abordar  tema deste  género,   com a idade que tenho!  Embora pouco   me importando com isso, acho bom tornar claro   os motivos que me levaram a escolher este tópico. Certamente pode considerar-se isto uma fuga no ambiente de depressão que a  pandemia está  causando .  Em vez de ruminar pensamentos  aflitivos e tristes, procuro escapatória ,uma fuga,  entretendo-me em assuntos de interesse, como este , hoje, no ocidente muito debatido. Acresce que   aquela notícia fez-me recuar para o tempo em que eu ,  então  seminarista  embatinado, passava as férias, junto com a minha família  num ‘bungalow’, em plena praia no meio dum denso coqueiral, em Calangute.

Ora aquela notícia dizia respeito ao  atletismo   e  referia que em 9 de  Outubro  deste ano, a organização que governa o ‘Rugby’ a nivel mundial  , o ‘World Rugby Union, havia decidido  banir   as mulheres transgénicas – ‘trans women’ – das competições olímpicas. O articulista definia estas mulheres como ‘pessoas biologicamente machos mas que se identificavam como mulheres’. A proibição dava como motivo, a segurança : evitar que o contacto físico, musculado das transgénicas   com as  jogadoras concorrentes, causasse  danos ou lesão física nestas. Esta decisão causou  abalo no mundo desportivo  porque  noutros desportos,doutro tipo, as mulheres ‘trans’ eram legalmente aceites nas competições internacionais. Atendendo a este facto a Comissão Olímpica, suavizou o rigor da proibição removendo por exemplo o requisito de  cirurgia genital  para as ditas mulheres, exigindo em contrapartida uma declaração de honra em como a participante era mesmo mulher.

Mesmo assim, houve atletas do sexo feminino que se queixaram de  que era injusto deixar competir com elas , pois as atletas ‘trans’ ,   não obstante se identificarem como mulheres, continuavam a ser biologicamente machos!

Este apontamento sobre ‘trans women’  fez-me recordar, num recúo de memória,   um  episódio algo similar que ocorreu  frente a meus olhos, e é portanto verídico,  não empolado em  geito  de ficção.

Estavamos em família ,   ‘de mudança’ – como se dizia no linguajar  português de Goa, num ‘bungalow’, em plena praia de Calangute. O ‘bungalow’ era uma casinha de um pescador, na altura embarcadiço.  Em redor só coqueiros e aqui e acolá casebres de pescadores. Aquele local ficava mesmo na raia  da propriedade do meu avô materno. Portanto o dono do ‘bungalow’ não era ‘manducar’ do meu avô mas era ‘manducar’ dum outro rico proprietário. Eu teria os meus dezóito anos. Airosas moças  iam e vinham da praia  com cestas cheias de peixe fresco para venderem  na praça. Era um espetáculo de encher os olhos.   Nisto, como  por estranho magnetismo, o meu olhar fixa-se numa moça  que ia cabisbaixa  na companhia de duas   faladoras e alegres,  a quem não prestei atenção. A jóvem  calada  ergueu a cabeça e , acto contínuo,   o nosso olhar se cruzou como  relâmpago.  Ela    não tinha nada de singular no aspeto físico exterior: todas traziam vestido o traje usual de jovens pescadoras  de Goa. Talvez a   moça   sisuda fosse  uns   anos mais velha. Mas  notei   algo esquisito  nela tanto que se  criou uma fixação no meu espírito. Chamemos   a esta moça, Kôtrin ( corrupção do português  Catarina).  Passados uns  dias, torno a vê-la à  hora do crepúsculo e  aquele local da praia  deserto, sem gente.  Uma canoa acabara de dar  à praia, gralhas à volta ,  um grupo de  pescadores tinha  puxado  a  rede e a faina acabara. Kôtrin faria   parte do pessoal da faina.  Kôtrin vinha acompanhada de dois homens pescadores em tronco nú  de peitança cabeluda e na cintura  langotins. Os olhos deles reluziam ,  deitavam fumaradas pelos  canudos. Kôtrin trazia calções.

A minha curiosidade agudizou-se.  Pouco dias faltavam para terminar  aquela estadia na praia.  Quem me podia esclarecer  melhor sobre a  Kôtrin que se tornara para mim, agora,   como que  uma obsesessão ?!  E decidi pelo Rôgló. Ele era hindú, de casta  ourives.  A sua casa  situava-se na propriedade do meu avô materno, mas não era manducar  dele. A casa de Rogló era própria. Rôgló era um  jóvem  da minha idade e muito frequentador da casa do meu avô. Era ele  um serviçal para recados e fretes e muito  estimado. Num encontro que tive com Rogló, ele perguntou-me:

– Está a perguntar sobre quem ?  Sobre Kôtrin ?  A casinha dela fica perto do vosso ‘bungalow’.  Porquê me pergunta ? Todos sabem e acham aquilo normal.  – Deixei-o falar :

  ‘ela nasceu com  o  sexo feminino e assim ficou registada e foi crecendo. Mas à medida que ia crescendo e tomando corpo ela só se dava com os rapazes e suas brincadeiras. Os pais várias vezes a repreenderam. O pai, sobretudo que se metia nos copos, uma vez castigou a filha de maneirs bárbara.    Atou  a pequena a um coqueiro, retirou-lhe a blusa e derramou  no seu pescoço  vinagre para atrair  formigas bravas  (um’lé) … Isto aconteceu há anos. Mas nem por isso a moça mudou de comportamento e mal espigou,   fugiu da casa dos pais e arranjou um casebre seu, fazendo a sua vida.

– Mas eu vi-a com um grupo de pescadores que tinham vindo da faina no alto mar.

– Sim ela  faz tudo como os homens, vai com eles , fuma, bebe … mas discretamente. A gente já está habituada e não vê nisso mal .

Nas vésperas de terminar a estadia na praia, ou  aquela  ‘mudança’ como lá se dizia, quis localizar  a choupana da Kôtrin, segundo as indicações que o Rôgló me dera. Eu a aproximar-me da casinha e Kôtrin, acompanhada de uma jóvem, a entrar. Assim que deu por mim,  viu-se comprometida  mas não se acobardou. Olhando para a sua companheira que atrasara o passo,  disse  em tom mandão:  ’ anda daí Koinção !  A  panela está ao lume’. Entraram as duas. E Kôtrin fechou a porta triunfante,  olhando  ostensivamente para mim.

Leopoldo da Rocha

Apresentando um escritor marata radicado em Goa

Outubro 24, 2020


Talvez por ter passado a minha infância numa zona de Goa onde a população cristã é minoria e na minha família ter havido bastante contacto e confraternização com hindús de vário extrato, o apelo à língua marati que é língua de cultura desta comunidade deixou sinal no meu subconsciente. Quando ainda pequeno , tive nos estudos do Seminário uma disciplina de Marati-Concani, apenas por um ano. Foi pouco, mas aprendi alguma coisa. Por isso qualquer autor marata que publique o texto, escrito no seu idioma ,mas vertido para inglês ( que é o mais comum) chama logo a minha atenção. O texto porém que passarei a comentar oportunamente, foi originalmente escrito não em marati mas em inglês e publicado na revista Interdiscipliary Journal of Portuguese Diaspora Studies (vol. 7-2018). O título do ensaio é ‘Identity, Exile and Literature in Goa’. O seu autor é Vishram Gupte. Para bio-data deste autor recorri a um ‘post’ do Dr. Nandakumar Kamat no Goa-Research-Net, de 6 de Jan. de 2005.
Vishram Gupte é originariamente de Nagpur, cidade do estado de Maharashtra. Radicou-se em Goa em 1985. Ele e sua mulher formavam um casal de pessoas cultas, tanto assim que , mal se fixou em Goa, ocupou o cargo de ‘professor’ no Colégio Universitário de Mapuçá ‘V.N. Bandekar’. A sua esposa por sua vez, médica genicologista, trabalhou no ‘Vrindavan Hospital’ também de Mapuçá. ´Curiosamente Gupte largou a docência e acompanhado da mulher e filho rumou para Tabuk ,uma cidade petrolífera da Arábia Saudita na periferia do Egito . Aqui o casal Gupte viveu durante quatro anos.
Tabuk era ponto para onde confluíam comunidades de etnia vária: como indianos, paquistaneses, goeses (hindús e cristãos) etc. para fins de trabalho a soldo do poderoso anfitrião que é a Arábia Saudita. Durante a sua estadia, Vishram Gupte recolheu o material para escrever uma novela centrada num protagonista a quem chamou Vikram , o que não pode deixar de reflectir uma componente autobiográfica. O enredo é simples : Numa escola co-educacional Indiana, o lugar de uma professora da secção feminina , fica vago, e Vikram concorre para a vaga . Mas o facto de um homem ensinar alunas numa sociedade altamente conservadora, com serviços tradicionalmente estanques para os dois sexos, provoca uma reacção em surdina que se vai avolumando .Professores do sexo masculino não podem ser contratados na Arábia Saudita onde trabalham mulheres como professoras. O ambiente fica tenso, carregado de mal estar e intrigas – tudo de cariz cultural – tendo como pano de fundo uma sociedade ortodoxa e ultra-conservadora. Vikram, o professor de estudantes do sexo feminino,acaba por criar problemas na sociedade Saudi. É denunciado e o tribunal condena-o. Expulso, Vishram (ou Vikram) deixa a Arábia Saudita e regressa à India com a sua família. Esta temática deu-lhe para escrever a novela ‘Al Tamir’ em marati (Poona, 2003). O livro foi aclamado nos círculos literários da língua marata, ganhou o prémio ‘Solapur Bhairu Ratan’ em 2004. Para o citado crítico Dr. Nandakumar , esta novela é pioneira no meio de todas as línguas da India ao abordar a sociedade saudi e criticar os valores tradicionais por que se guia. A novela tem subjacente uma mensagem moralizante. Gupte não critica a religião muçulmana como tal, ou o Korão , nem os muçulmanos, mas acha que a forma, muito tradicional e arcaica como é praticada a religião na Arábia Saudita , está desadaptada aos ventos que varrem o mundo nesta época globalisante. Os direitos do Homem , a igualdade e equidade – aponta e bem o crítico – estão acima dos ditames de uma religião institucionalizada, porque são valores transcendentais.
Sobre o escritor, o Dr. Nandakumar afirma que ‘Vishram Gupte é um escritor poderoso em Marati e um tradutor especializado’ (= Vishram is a powerful writer in Marathi and an expert translator’. Já na altura, 2005, Gupte radicado em Goa, com a sua produção literária em marati, tornou Goa conhecida nos círculos literários do Maharashtra. O seu ensaio sobre a língua concani, no contexto da identidade goesa, dá bem disso mostra. Deo volente , noutro nosso ‘post’, pensamos bordar algumas considerações em torno deste ensaio.
Outubro de 2020
Leopoldo da Rocha

Damão num conto intitulado ‘Xilú’

Agosto 23, 2020

Fico  contente que o conto ‘Xilú’, em português, traduzido  com mestria  para  inglês, por Paul de Melo e Castro, e  publicado na revista eletrónica ‘João Roque Literary Jounal’ ( Ag. 2020) tenha sido bem recebido. Tenho a certeza de que o foi pelo menos da parte de um certo grupo de leitores já com  empatia com a língua e literatura portuguesas. Outrotanto não se pode  afirmar do núcleo para quem o português  é  ‘grego’, assimilado  que está    na cultura anglo-americana. Compreendo portanto  que ainda a responsável da dita Revista tenha qualificado  o conto ‘Xilú’ de  ‘esquisito’.  Esquisita é realmente a narrativa estilistica de Elsa, barroca em demasia, com retratos de personagens traçados à sua maneira,tudo pouco  apelativo ao  cânon habitual do  anglófano .

Cerca de dois meses atrás, o meu amigo Mário Viegas havia-me telefonado a perguntar  se eu sabia de uma estória ou texto escrito pela minha irmã Maria Elsa da Rocha ambientado em Damão. Lúcido, não obstante a minha idade, lemembrei-me logo de dois ‘posts’ meus publicados no meu blog  ‘lusogoanus.wordpress.com’. Um, de Novembro 21, 2011 tinha por título: ‘Damão num conto inédito de Maria Elsa da Rocha’ O segundo ‘post’publicado em Dez. 3, 2011 era o texto integral da cópia envia a mim por Paul de Melo e Castro. Eu o tinha revisto apontando algumas gralhas notórias e depois tornára a enviá-lo a ele. Achei que Paul não recusaria o consentimento  caso eu quisesse publicá-lo. Fora ele que recuperara e salvara o MS. Reproduzo a seguir as minhas palavras introdutórias quando da publicação do referido texto:

Deve-se ao investigador e académico Paul de Melo e Castro a recuperação deste conto de Elsa. Ele enviara-me o texto por ele corrigido, pois estava mal copiado, apontando-me expressões que levantavam dúvidas. Note-se que Elsa escreveu este texto em 1986. Portanto cerca de 25 anos após a anexação de Goa, altura em que não existia órgão de comunicação em  língua portuguesa para a sua publicação. Provavelmente Elsa tê-lo ia feito para uma colectânea que ela sempre tivera em vista. O conto que apresento baseia-se no texto que tornei a enviar ao dito académico depois de o sibmeter a ulterior ‘editing’ que achei necessário. Também anotei o texto para melhor compreensão.

Elsa faleceu em Agosto 26, 2007. Mas ultimamente ela andava  acamada com  frequência.  A coletânea de contos  que era a sua preocupação  e o trabalho de revisão das provas começara a sofrer atraso. Lembra-me eu ter telefonado ao Padre Eufemiano Miranda , então pároco da igreja de Santa Inês, logo após a morte de Elsa, para lhe agradecer tudo que ele fizera por ela. O Padre Eufemiano disse-me então que  Elsa thinha chegado a ver, quando viva e lúcida, uma cópia do seu livro ‘Vivências Partilhadas’ (Third Millenium,2005). Elsa tinha  muita consideração por   Eufemiano que  fora seu conselheiro espiritual e ainda fizera a revisão de alguns contos dela.

Após a morte de Elsa, o seu espólio bibliográfico ( isto é MSS)  passou para as mãos de Paul de Melo e Castro por intermédio do editor  da Millenium , Oscar de Noronha. A seguinte carta ou email de 3 de Agosto de 2015, que eu enviei à Edith Furtado esclarece melhor o curso deste espólio : ‘ Cara Edith,

Respondo ao seu pedido por email de ontem. Os escritos não publicados da minha irmã Elsa , seus contos, estão na posse de Paul de Melo e Castro. Para ser honesto e sincero direi que foi ele quem descobriu Elsa como contista e revelou as qualidades da sua prosa em lúcidas críticas. Eu tive uma pequena  ‘escaramuça’ com  ele porque Paul me enviara alguns textos como (sendo) de Elsa que eu reputava não serem dela. Mas passou tempo, serenei o meu juizo, aclarei a minha visão crítica e  cheguei à conclusão que Paul teria razão. Depois disto eu reatei a minha correspondência com Paul. Ele me enviara uma série de ‘unpublished stories’ para eu ler e decidir. Os contos que achasse serem genuinamente de Elsa seriam lidos por mim e os textos devolvidos com as correções que eu julgasse necessárias. Também seriam indicados os textos que eu achasse ‘espúrios’. Assim fiz. Passou bastante tempo e Paul não abriu mais o assunto. Julgo que ele está muito ocupado. Se não estou em erro, foi em Out de  2014 que ele me enviou aquele material em ‘attachment’. Ficou posteriomente acordado entre nós

que os textos de Elsa aprovados por mim seriam publicados e os tais ‘pseudo-espúrios’ também, para se fazer uma análise comparativa do percurso estilístico de Elsa.  Depois houve uma longa pausa…’

De entre os ‘unpublished stories’ referidos acima, menciono dois contos que eu publiquei sem prévio  consentimento  de Paul: a) Damão num conto inédito de Maria Elsa  (‘lusogoanus’ Nov. e  Dez. de 2011)  b)  Introdução ao conto ‘Seiva Amarga’  (ibid., de Fev. 2012).

Reproduzo  o seguinte excerto  deste último ‘post’:

‘Talvez eu esteja mais bem posicionado para aclarar a diegese dos contos de Elsa para o comum leitor. Outra razão é que conheço o   concani que Elsa utiliza . Elsa veicula o português num fluxo espontâneo , misturado com o concani, hoje muito mudado, não raro amoldando o português ao concani coloquial. Numa carta para mim o referido académico Paul assinalou esta virtualidade estilística de Elsa que ele, por desconhecimento da língua, não podia explicar em pormenor’.

Já agora para terminar.  A coleção de contos de Maria Elsa da Rocha com o título ‘Vivências Partilhadas’ não deve ser traduzida como ‘Shared Lives’. Em português, vida e vivência implicam conceitos não idênticos. Estas palavras derivam do latim: vita,ae (subs), vivens, viventis  (particípio do presente). Quando Paul de Melo e Castro  traduziu o meu texto ‘Morte do Lulú’,  ele  não o traduziu como ‘Death of Lulú’. Tinha  as suas razões. Ele perguntou-me  se eu tinha qualquer outra opção para além das que ele indicava. Eu sugeri: ‘Lulú dies alone’. A minha sugestão foi aceite.

Leopoldo da Rocha

Em torno de dois historiadores Goeses pouco conhecidos : José Gerson da Cunha e J. J. A Campos

Julho 10, 2020

 

Embora os dois partilhem o estatuto de grandes ‘scholars’ no domínio da história Indo-Portuguesa, o primeiro, Gerson da Cunha, desdobra-se num leque polifacetado cuja imagem se encontra traçada logo no  primeiro parágrafo da substanciosa bio-bibliografia de G.C. na conhecida fonte da Internet : Wikipedia.  Começa assim a entrada: ‘ J. Gerson da Cunha (2 Fev.1844 – 3 Ag. 1900) foi um médico goês que ganhou notoriedade internacional como historiador orientalista, linguista e numismata’.

Sobre o outro, a mesma fonte refere o seguinte: ‘Joachim Joseph A. Campos (1899-1945) … Ele é conhecido pela sua obra History of the Portuguese in Bengal (1919)       que para o historiador Dr. Teotónio R. de Souza  continúa  a ser  obra   clássica’. Esta afirmação  valoriza sobremaneira  o estudo histórico   de J. Campos sabido como o notável historiador Teotónio era parco em elogios à  ação colonizadora de Portugal e, para além disto,  o Autor do livro demonstrava a sua orgulhosa  adesão à gesta de Portugal naquela região  da  India de  agora.

Não deixarei de frisar, a propósito destes dois historiadores, um facto que me deixara  intrigado. Porquê será que  os dois escritores ficaram esquecidos  nas bibliografias correntes do meu tempo ? O período de referência é aquele que vivi em Goa, o do Estado Novo, do tempo de Salazar. Acho que mesmo no período anterior ao advento do regime de Salazar o círculo da literacia dos cristãos em Goa se limitava a um punhado de famílias que  falavam e liam o português. Do tempo quando eu era criança, lembra-me que em minha casa o inglês era desconhecido. Recorda-me da visita de  uma pessoa douta vinda do Ceilão  que desejava   colher uns dados para  um assunto que lhe interessava. Mas o indivíduo falava o inglês e desconhecia o português. Foi-se embora desiludido. Não se tratava de uma zona citadina onde estivesse localizada a nossa casa, mas sim uma simples mas grande aldeia de Bardez.  Na casa do meu avô materno e outras relações  verificava-se o mesmo. Constato também que acontecia  a minha família manter  o trato com parentes noutra freguesia mas não tinha trato algum com  consaguineos desta a viverem fora de Goa, na Índia britânica, muito  embora alguns  deles ocupassem lugares de relevo lá. É porque estes parentes  não estavam enquadrados  na esfera lusa, mas sim anglófona.

Curiosamente é parecido o contexto da vida dos  orientalistas  Gerson da Cunha e de  Joaquim  José A. Campos.

 

Quando no início do segundo quartel do século XX,  despontaram   em Goa as  escolas particulares de língua inglesa, o inglês como veículo  começou  a  crescer  num ritmo acelerado. Em Bombaim e outras  localidades distantes de Goa como Bengala (Calcutta)  havia  uma diáspora de  famílias goesas , de élite,  aculturadas à portuguesa,  que se tinham radicado lá. À primeira geração ainda era familiar a língua portuguesa mas as gerações  seguintes andaram a navegar pela  onda anglo-saxónica. É curioso que as primeiras gerações  e as imediatas sempre estiveram umbilicalmente afeiçoadas a Goa e ao modus vivendi luso-goês.  José Campos e Gerson da Cunha são desta cêpa.

Numa sua intervenção, na qualidade de deputado da India Portuguesa para o Parlamento em Lisboa (25 de Jan. 1947), Froilano de Melo referiu-se à expansão do inglês em Goa, afirmando que na altura havia 63 escolas privadas que abrangiam 8890 alunos numa proporção 22 vezes o número dos alunos do Liceu de Goa! O  citado historiador Teotónio de quem recolho a informação (seu ‘post’ de 17 de Jan, de 2005, para Goa-Research-Net),  não contemplava , julgo,  os alunos das escolas primárias de Goa.  Mas mesmo dando desconto a  esta parcela, o que importa é a  contribuição  que o inglês trouxe à Goa não só a nível da instrução do goês comum, até então arredado de acesso à instrução e educação, como a nível da economia de Goa. O  goês em busca de melhores horizontes  para  se sustentar e sustentar  a sua família,  tinha de emigrar forçosamente.  E a partir do  segundo quartel do século XX,  já com credenciais da sua escolaridade, obtidas nas escolas de inglês de Goa que o validavam para emprego nas possessões inglesas, o emigrante goês rumava pela costa fora. O rol dos serviços que   prestaram e como dignificaram o seu país natal, Goa, está sendo agora desbobinado em  livros e ensaios de  rigor escritos em inglês pelos próprios goeses.

Neste contexto, as obras escritas  em inglês pelos citados Gerson  da Cunha   e Joaquim José Campos , em inglês, ficaram ignoradas limitadissimo como era o círculo de leitores e estudiosos académicos em Goa, onde  imperava só a língua portuguesa.

O grande mérito dos colonizadores britânicos foi   assim que assentaram raízes  na colónia, eles terem querido também explorar o seu húmus cultural, não para impregnar valores religiosos cristãos ou ocidentais, tal como os Portugueses tinham feito. Os investigadores  indianos  que acompanhavam os ‘scholars’  ingleses , faziam-no  com latente instinto de patriotismo  (a independência da India, ou  India una,  como entidade política, estava longe no horizonte) – os investigadores  serviam-se da ferramenta do colonizador que era a língua inglesa. Neste afã de investigação da cultura indiana a perspectiva da história era emproadamente saxónica. Os ingleses apresentavam-se como pioneiros do orientalismo quando, como bem anota Gerson da Cunha  na sua Comunicação para o Congresso dos Orientalistas em Florença (16 Set. 1878) ,e  a Investigadora académica  Filipa Lowndes Vicente o secunda : muitos aspectos de etnologia, antiguidades, história natural ou comércio indiano  haviam sido já descritos pelos antigos cronistas portugueses, de João de Barros a Diogo do Couto (vide  o ensaio de F. L. Vicente ‘Orientalismos Periféricos’#7).

No seu agora conhecido livro ‘History of the Portuguese in Bengal’ (Calcutta :Butterworth, 1919), à p. 4,   J.J.A. Campos  tem a seguinte afirmação:  ‘O Oriente que os Portugueses acharam, era muito e muito diferente do Oriente que os Ingleses e Holandeses encontraram, pois o que  estes espreitavam era onde havia  facilidades para comércio’. Daí se explica que os primeiros aventureiros ingleses e países adjacentes fizeram o seu assentamento, com naturalidade, nos lugares onde os Portugueses tinham já desbravado o terreno.

Pelo mesmo diapasão já havia afinado   J. Gerson da Cunha no seu livro ‘Notes on the History of Chaul and Bassein’ (Bombay:Thacker, 1876)  quando escrevera :

“Portugal … a mais pequenina nação, não podia conter a grandeza do seu coração, erigiu um empório comercial no Oriente o qual pela sua extensão, opulência e esplendor não teve rival algum na história das nações até  a vitória  de Plassey”.

 Como é sabido, a  batalha de Plassey deu  vitória à ‘East India Company’ da Inglaterra e marcou o início de cerca de dois séculos do domínio britânico na India. A vitória não foi nada valerosa porque foi fraudulenta.

Cerca de dois anos antes de eu deixar Goa, minha terra-natal,estando hospedado na igreja de Goregão , fui visitar a Praça do Norte ou o Forte de Bassaim . Cheguei lá à hora do entardecer e  quando olhei para aquelas ruínas todas e campas  de granito com inscrições tumulares :  Aqui jaz… –   delidas pela pátina do tempo, apoderou-se de mim uma sensação de melancolia, talvez não muito diferente da que terá ocorrido ao  historiador Gerson quando escreveu aquele seu poderoso  livro sobre Chaúl e  Bassaim . Transcrevo as palavras dele para remate:

“Quando olhamos para aquelas ruínas, dá-nos a sensação de que estamos perante as relíquias de uma civilização. Quaisquer que tenham sido as suas falhas ou por mais anacronicas que se apresentem as suas instituições aos homens da presente era, não há dúvida de que ela (essa civilização) respondeu e bem à finalidade intentada, satisfez as exigências do (seu) tempo e quando se tornou caduca deixou de existir – uma mera questão de evolução, não de revolução” (op. cit. p.8).

Leopoldo da Rocha

 

O autor responde à crítica de Marise D’Lima

Maio 5, 2020

 

No   último ‘post’ da minha Página ‘Lusogoanus’ (Dez. de 2019), eu mencionava uma Resposta que ficou pendurada no título. Embora os pontos essenciais dessa  minha resposta ou justificação  tivessem sido  expostos por mim em inglês no site  Goa Research-Net, (Nov 21, 2019)  sob  o título ‘About a book’,  vão eles  agora elaborados com mais desenvolvimento.

A distinta  académica Mónica  Marise D’Lima, minha prima e familiarmente conhecida como Cuca,  fez uma longa crítica do meu livro  ‘Casa Grande e outras recordações de um velho Goês(Lisboa: Nova Vega, 2008). Fê-lo no jornal electrónico ‘Muse-India” no contexto: “Focus – Goan Literature in Portuguese’. Retroverto  agora em português aquilo que escrevi  no tal  meu ‘post’ para GRN:

Confesso que aquela sua crítica, à primeira leitura, deixou-me irritado.  Bal, o protagonista da novela,  é  taxado de misógeno  e as suas aventuras sexuais  encaradas  como   uma espécie de vingança sobre as   mulheres pois ele  as vira   como manipuladoras  na própria família :    haviam-lhe  feito uma lavagem ao   cérebro quando pequeno, e o  tinham  mentalizado a entrar no Seminário para   padre.

Como disse,   desagradou-me muito esta leitura de  diagnóstico psíquico da minha pessoa.  Mas  a interpretação de Marise vista  num ângulo pontual ,  no contexto amplo  e abrangente, pode   até ser acertada. Mas lá  vamos.

Na contra-capa do  livro Casa Grande’ está dito – e bem – que o autor procura recriar, através de matizes significantes  da memória, momentos da sua  vivência que deixaram rasto na memória de Bal, heterónimo do autor. Cito  ‘verbatim’  o parágrafo em inglês da minha resposta: “But Marise’s critique is flawed. She dwells mainly on the first chapter – Casa das Primas and draws her conclusions. She overlooks other important chapters of the book that paint a different picture not only of the social new mood after Goa being liberated but also Bal’s mental disposition to accept the unavoidable change.’

Na verdade , o primeiro  capítulo do livro , Casa das Primas é o que suscitou interesse de Marise .  O cenário está muito bem  focado e analisado por Marise. Mas este episódio  representa apenas um acontecimento pontual na vida de Bal . Este capítulo com que se iniciou a narrativa talvez tenha sido intencional da minha parte,  para dar um tratamento de choque ao leitor goês sempre  conservador, nesta matéria,  e muito dissimulado.  Acresce que  eu já dera   o mote ao conteúdo do capítulo quando citei o grande escritor norueguês Hamsun e o seu famaso livro  Fome. Enquanto neste livro ‘Fome’ significava mesmo fome física, o  meu primeiro capítulo remetia para a fome do sexo reprimido. Repare-se que à data que escrevi isto, não existia cá em Portugal uma  tradução do livro de Hamsun. Mas eu já  lera o livro numa antiga edição brasileira, quando adolescente,  no grande casarão  dos meus avós maternos, protegido  de uma cerca dum  infindável palmar e com pano de fundo musical  o bramido  das ondas do mar.

Escreve  Marisa : “No pôr-do-sol da sua vida, Rocha desbobina as suas memórias numa forma ficcional, temas considerados tabús, nunca abordados por escritores indo-portugueses”.   Concordo e é verdade. Mas tabús não eram certamente outros aspectos  que a narrativa oferece, a que  Marise não presta atenção  ou  o faz de  modo muito vago.    Tomemos o  título do livro : “Casa Grande”. O capítulo 6  traça a evolução da ‘Casa’    do  Autor ,  desde o início da  conversão do primeiro membro do  clan.   E fá-lo baseando-se em documentos fidedignos, de primeira água, e não, como agora ocorre em bibliografia goesa ango-saxónica:  com recurso a documentação de segunda mão, quando não da fonte turva, híbrida e pouco fiável  da Internet. Corra-se o referido capítulo 6 e o leitor se sentirá recompensado com  uma história real e não mera ficção.

A narrativa descrita no capítulo 3, intitulado  ‘Mardol’ é inspirada na estadia pessoal de ‘Bal’   por cerca de uma semana nessa freguesia de  ‘Mardol’, predominantemente hindú, uns dois anos após a anexação de Goa . A ‘estória’ com os protagonistas: o Arcebispo D. Frei Inácio de Santa Teresa, Dona Quitéria etc. acha-se fortemente ancorada em dados históricos. Escreve Marise :’ No rescaldo da violenta entrada da India em Goa no fim de 1961, e a consequente mudança política, ‘o mundo familiar de Bal colapsa’ (itálico meu).

O novo ambiente socio-cultural que a anexação de Goa operara,  embora previsível da parte de  Bal , causou-lhe naturalmente desalento no espírito, pois tratava-se de uma pessoa muito ligada à cultura portuguesa. Esta ligação torna-se perversa durante o consulado míope de Salazar que tratava Goa como se fosse um casulo vedando à colónia qualquer abertura cultural para a grande India. Mas Bal estava aberto, ao contrário de muitos outros.   Pode-se entrever  a receptividade de Bal  para os novos ventos quando da Anexação. Transcrevo as minhas palavras:

“ Bal tinha presente Vamona (nome fictício) a quem conhecera precisamente um ano antes da ocupação de Goa pela India.  … Foi surpresa para Bal ver aquele hindú com um livro de Camilo   Bal meteu conversa e Vamona responde assim:

-Não leu este livro ? – e estende-lhe o livro, acrescentando:

– ‘Vocês’ deviam ler este livro ‘ – ‘Vocês’ referia-se a padres católicos.

Bal viu o livro. Tratava-se da tradução feita por Camilo,  intitulada ‘A freira no subterrâneo’. Havia passado um ano e picos sobre a anexação de Goa e calhou o mesmo Vamona  encontrar-se com Bal no combóio . Desta vez estava entretido na leitura. O livro  já não era em português mas em marati. O livro era um policial segundo ele  disse   a Bal que  passou uma vista de olhos pelo título.  Bal sabia ler os caracteres devanagáricos e aprendera  um pouco de   marati.  O livro não era nenhuma tradução de Agatha Christie ou Stanley Gardner. Este Vamona, companheiro de viagem, é um paradigma de colonizado português  (p.58), estava tanto à vontade na língua portuguesa como numa língua  indiana, moderna e evoluída , em Goa.

Outro episódio referido no mesmo contexto, também é exemplar . Tinha sido anunciado que em Margão, a Lusa Atenas de Goa, iria ter lugar um evento cultural num ‘club’ seleto da cidade. Pela primeira vez Bal assistia a uma exibição teatral no palco, com números de folclore  indiano de grande nível. E ficou logo impressionado com a cena  de abertura: a dança de pavão, uma réplica da “morte do cisne”, unicamente ao som dos ‘tablás afinados’ . Para Bal, esta cena foi de gritos. A contribuição que seria da comunidade cristã, foi uma lástima.  No fim do espetáculo, Bal dirige-se ao Padre Caetano, seu grande  amigo e conselheiro espiritual. Este diálogo   espelha bem a luta que se travava  na alma  de Bal. O diálogo começa com um desabafo de desalento: – Eh pá,Caetano,  estamos f… f… (p.60).

Em conclusão:  Bal não abandonou a sua terra natal por se sentir desadaptado ao novo meio cultural como Marise afirma.Nem a nova fase da sua vida na terra do colonizador teve um início risonho. É só ler o capítulo 10. Dá a impressão  de que Marise, como crítica, ficou refém do episódio narrado na ‘Casa das Primas’ e saltou pelo resto como um gato sobre as brasas.

Maio de 2020

Leopoldo da Rocha