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Com precedência de meses, foi saudado com uma orquestração concertada, altamente laudatória, nos grandes órgãos da imprensa anglo-saxónica (New York Times,The Atlantic , The Guardian etc. ) o livro ‘Klara e o Sol’ do escritor britânico de origem japonesa, Kazuo Ishiguro.
No auge do seu poderio colonial, o Reino Unido dominou meio-mundo e deixa uma herança cultural ímpar: a língua inglesa que agora é língua franca à esfera planetária. Com subtileza, a Inglaterra levou para a ribalta, no campo de letras e humanidades, escritores doutras raças que se serviram do idioma inglês para maior divulgação dos seua textos. Eles tornaram-se depois nomes sonantes e cito a título de exemplo: Tagore (R. Takkur), Radhakrishna, Naipaul, Wole Soyinka, nigeriano. No caso vertente, o japonês Ishiguro é uma singulariade esquisita. Nascido em 1954 em Nagasaki (Japão), veio com os pais para Inglaterra quando tinha 5 anos. Aqui se radicou, cresceu e fez os estudos superiores tendo apenas ido de visita passageira à sua terra natal passados 30 anos.
Num entrevista ele afirmou: ‘Eu não sou inteiramente inglês porque fui criado pelos meus pais japoneses falando japonês em casa. … (mas) tenho um ‘background’ distinto. Penso de modo diferente, as minhas perspectivas são um tanto diferentes’. Em 2017 Ishiguro foi galardoado com o Prémio Nobel de Literatura e a citação diz : ‘por ter retirado (= ’uncovered’) um pouco do véu ao abismo por detrás do nosso ilusório senso de conectividade com o mundo’. Julgo que esta perspectiva teimosamente persistente, já revelada na novela ‘Never Let Me Go’ (2005) e outros escritos, ressurge agora no módulo idêntico de ficção científica distópica. ‘Never…’ é um mundo fechado de ‘clones’ e a narrativa, em primeira pessoa, parte de um elemento do trio de ´clones’ (Khati) bem consciente de que o seu fim e doutros clones está iminente. Em ‘Klara e o Sol’ a narradora, também em primeira pessoa, é um androide denominado AF (‘Artificial Friend’). ‘Klara…’ em figurino, traz-me à memória o embrião-chimera (parte mumano, parte outra espécie , recentemente criado num Laboratório de China pelos cientistas. No embrião deste tipo apenas 1 célula humana, em cem mil, vinga. E mesmo assim, é pouco claro qual o contributo da célula humana para o desenvovimento daquele organismo criado no laboratório chinês. Para o leitor pouco familiarizado com a ficção científica acho bem apresentar a moldura onde se desenrola a acção da novela de Ishigura. Esta moldura encontra-se desgarrada, não é linear ,fragmentada em pedaços da memória de ‘Klara’, uma boneca androide, tamanho natural para uma ‘teen-ager’ de treze anos. No início da compra o ‘manager’ do armazem quisera impingir o modelo mais aperfeiçoado de AF (B3), mas houve uma atração misteriosa de Josie ( menina pálida) por Klara (AF-B2).
‘Klara is packed and sent to Josie’s house’ – a partir deste momento começa a narração algo linear pela voz de Klara. O cenário onde se desenrola esta ‘estória’ surrealista é algures na Amércia, num futuro não muito distante.Um sítio campestre, ermo, com casas dos amigos de Josie localizadas a quilómetros de distância e convívio nulo. Esta Amérca está rigidamente estratificada. Por um lado uma sociedade endinheirada que se serve para os trabalhos de rotina unicamente de ‘robots’, e por outro lado uma camada de operários descartados por causa dos ‘robots’, a viverem em solidão e angústia. Há Universidades para élite para as quais podem candidatar-se apenas alunos com alto quociente de inteligência. Por isso, os pais das famílias ricas, para garantir o futuro dos filhos, procuram educá-los não em escolas convencionais, mas em suas casas , recorrendo a um processo chamado ‘lifting’. É um processo pelo qual aquelas crianças são ensinadas via smarthphones e deste modo são geneticamente modificadas (ou ‘lifted’). Ou melhor, para me servir das palavras de um crítico: ‘lifting’ é um termo à Pangloss para designar edição genética, feita para aumentar o grau de inteligência ou ao menos para melhorar a performance académica’. Quem comanda a operação não fica bem claro. Mas certo é que o processo de ‘lifting’ envolve potencial de alto risco para a saúde da criança. Não descobri este detalhe na retórica das ‘book-reviews’ que passaram por mim, com exepção de uma onde alude a um eventual acto cirúrgico (talvez na face).
A mãe de Josie, mulher problemática , fundamente egoísta, já perdera a sua filha mais velha, precisamente devido às consequências do ‘lifting’ a que a jovem fora submetida. Encontrou o substituto na filha mais nova, Josie. Mas muito em breve esta jóvem daria sinais de que algo não corria bem com a saúde. É nesta altura que a mãe ‘tarada’ de Josie leva a filha para o tal armazém para comprar aquela boneca androide, para fazer companhia à filha. Estas bonecas são no aspecto exterior semelhantes ao ser natural. Não se alimentam, porque são androides. A sua energia é unicamente derivada do Sol, dos raios solares. Falam, atúam, reagem a modo humano, mas até um certo limite porque a programação ainda não chegou aí.A ‘sensibilidade’ de ‘Klara…’ por exemplo, ainda não atingiu o grau do ‘humano’. Mas o poder de ‘observação’ de’Klara’ e a axpansão da análise é espantosa. De quando em quando os ‘lifted’ têm uma reunião periódica para acertar os progressos de alta aprendizagem via smartphones’ dos ‘tutors’ que se revezam. Isto ocorre em casa de Josie, com ‘Klara’ e Rickie pesentes. Este Rickie é o único verdadeiro e leal amigo de Josie. É um ‘barra’ em construir ‘drones’ e muito inteligente mas infelizmente não pode entrar nas tais Universidades de élite porque não é lifted. A sua família também é problemática. Acontece que neste convívio (dos ‘lifted’, com anormal sexo à mistura) os convidados lifted começam a gozar (‘bullying) o coitado do Rickie, bem como a androide ‘Klara’. Klara rememora tempos, depois deste episódio, com secura e melancolia. Não denota sentimento algum (‘zero-feeling’) de ter sido gozada. É prova de como o ‘feeling’ de ‘Klara’ ainda não atingira o ‘humano’.
Estando ‘Klara’ em casa de Josie a fazer-lhe companhia com extrema dedicação, a mãe de Josie pede a Klara que a acompanhe para ver uma ‘cascata’ num parque. Diz que Josie pode ficar em casa sozinha porque está muito fraca… Klara acede, a contragosto, e foi nesta ocasião que ‘Klara’ ( que intuíra o problema de Josie), encara o Sol e pede-lhe que cure Josie em troca da sua própria vida. Josie ‘outgrows’ e ‘Klara’ é recambiada para o ‘store’. Ela relembra que o Sol foi muito bom para ela. ‘Klara’ relaciona o que Josie uma vez em conversa lhe dissera: que o AF ( ‘Artificial Friend’) é diferente, que ela (josie) e Rickie, seu leal amigo, vão ficar juntos para sempre.
Julgo que é altura para eu fazer algumas observações à volta desta narrativa surrealista. É verdade que a ficção científica pode lançar novas fundações, que pode implicar que os tradicionais cânones literários sejam arrasados. Ishiguro tem subliminares mensagens válidas. Tem também rervira-voltas quixotescas como aquela de Klara se dirigir ao Sol numa súplica de oração. A (AI = Inteligência artificial) robotizando um sector da sociedade vai criando um hiato de desigualdade atroz e estados de solidão e agústia. Isto pode acontecer também na chamada élite ‘lifted’, com a agravante de, nesta camada, já se esboçar o surto de competição entre os ‘lifted’ mesmo.
‘O ‘feeling’ de ‘Klara’ é ainda incipiente. Conseguirá a AI replicar o atual ‘feeling’ humano e outras emoções, como o sentimento de beleza, amor…? A AI , no seu passo veloz, recentemente invadiu já o campo sagrado da Vida. A engenharia molecular e a experiência conseguida na China. com o embrião humano (no Occidente está proibido), causa-nos uma apreensão sinistra e um arrepio. Como pôr o travão a isto e que consequências daí advirão ?
Não quero alongar-me mais. Fecho os olhos e abro um livro que trago à minha mesinha de cabeceira. Encontro lá uma ‘pagela’ (=um santinho), que eu comprara no Vaticano, na segunda metade do século passado, numa impressão ‘glossy’, muito linda : imagem de uma simples flor , talvez uma margarida que agora brotam nos terrenos. Como legenda, este verso do bardo místico Indiano: Tagore. Cito-a de cor, no belo idioma, de sonoridade estupenda , o italiano, que amo. Diz a legenda: ‘I tuoi secoli, Signore, succedono senza posa per rendere perfetto anche un piccolo fiore selvatico’.
‘Secoli per rendere perfetto…’ ? Agora, a engenharia molecular em plena força pode replicar aquela flor com a rapidez de quem carimba uma maço de cartas. O incidente traz à memória o episódio do Génesis: de Adão, Eva e Serpente .
Haja Deus e Ele guie o porvir do Homem.
Maio de 2021
Leopoldo da Rocha