Coisas de rir

No momento que se vive, de grande recessão económica e das ‘legionellas’ que levaram este subúrbio de Lisboa à ribalta da comunicação social , nada melhor do que um escape e este escape para mim é o rememorar alguns episódios à volta de um e outro padre de Goa, episódios estes que são engraçados. Por quê padre ? Evidentemente a minha ligação, de outrora, à classe clerical explica tudo. E depois tudo se interliga nas ciências. As recentes teorias de sociologia, linguística etc . (tenha-se só presente Saussure), não partiram de factos banais ? Ora o ‘laughing stock’, portanto que apresento, como pequena amostra, não será assim ‘trivia’.
Começo pelo saudoso meu amigo goês António, casado com uma senhora portuguesa, casal que então tivera já mais um filho. Na altura em que me encontrava em Lisboa atravessva eu um período de grande solidão e foi na casa de António que achei uma família acolhedora. António era reconhecido como ‘patriarca’ de um ‘clan’ de goeses que se juntava numa cervejaria para as suas patuscadas e era António que superentendia a tudo. Quando acontecia algum dos parceiros estar ‘teso’, não havia problema na hora de pagar a factura. Era António que entrava por ele e até eles. Era um tipo galhardo. Em sua casa para mim ele foi mais que irmão. Quando o visitava em sua casa já sabia o que me esperava. O ritual começava com o programa da telenovela americana enquanto bebíamos o ‘tintol’ (!) acompanhado de ‘petiscos’ à goesa preparados por António. No tocante à culinária goesa, António era de rigor estremo. Os temperos tinham de ser genuinamente goeses. Imagine-se que ele trouxera até de Goa um ‘roggddó’ de granito (mó para moer as pimentas). Como era funcionário da TAP, tinha algumas facilidades para isso. Após as boas entradas e aperitivos, vinha o jantar também praparado por ele . Se eu recusasse beber mais vinho , ouvia então a frase predileta de António que de tanto repetir eu já sabia de-cor: ‘Utt rê pad-Inaç, mar rê zompoi pikleleá perak! Aichem falleá mell’ná. ‘ (= ‘Levante-se padre Inácio, dê um salto para a pêra madura. O que tem agora pode não encontrar amanhã.’ ). Tantas vezes repetia este estribilho que mal ele começava com a primeira palavra ‘Utt…’, eu continuava o resto. Mas , de propósito , eu terminava esta ‘antífona’ em ‘piklekeá perak’. António corrigia e completava a frase restante que era a tónica dele: ‘Aichem …’. A filosofia subjacente para António –eu já tinha reparado – era desfrutar o prazer enquanto é tempo, pois o que acontecerá amanhã é imprevisível.Mas a que propósito vem o Padre Inácio aqui ( pois evidentemente devia ser um padre com batina ao tempo) para ser acordado afim de apanhar caricatamente a pera sedutora ? Ora este Padre Inácio é figura real, era do meu tempo. Não o conheci pessoalmente mas ouvi falar nele. Era um padre formado com curso completo e até – disseram-me- obtivera distinções. Mas no tempo do António, isto é, no princípio da década dos 50, quando António andava no liceu de Goa, Padre Inácio tornara-se um marginal. Passava horas e horas na Biblioteca Nacional de Goa , e era muito assídua a sua presença nos corredores dos tribunais como solicitador em causas dos clientes que a ele recorriam . Não era falado que fosse dado à pinga ou transgredisse o celibato. Como também dava ocasionalmente explicações de latim, foi talvez neste ofício que o Padre Inácio tornou-se conhecido e veio a ser alvo da galhofa da parte da malta estudantil do liceu. António deve ter colhido a tal anedota da pera neste contexto. Já para o final dessa década constara-me em Goa que o Padre Inácio fora suspenso ‘a divinis’ , isto é, não podia celebrar a missa. Quando o soube , revoltou-me a atitude nada pastoral e mesmo deshumana do então arcebispo de Goa. Aqui em Lisboa , António num dos convívios numa cervejaria de costume, lançara a ideia de se publicar uma pequena folha a que ele achara o nome: ‘Voz da Tertúlia’ ou Tertulianos ou coisa parecida. Teve existência efémera. Realmente foram editados apenas dois ou três números na NET. E num destes, o meu saudoso aluno, ex-padre, Dr. Rui Crasto lançou umas farpas ervadas contra o último arcebispo de Goa por ter tratado injustamente o pobre e inofensivo Padre Inácio. Vi-me aliviado pois não era só eu quem se sentira indignado.
Lembra-me agora uma outra figura . Chamemos-lhe pelas iniciais MM. Era um sacerdote brincalhão que punha todos a rir pelo seu gosto de, numa conversa, meter frases em latim, da bíblia para confirmar o seu asserto,a cada passo. Ele o fazia só com colegas eclesiásticos porque outros não entenderiam onde estaria a graça. Neste contexto,há uma anedota clássica a respeito de um frade franciscano que tinha esta mania de citar a bíblia por tudo e nada. O seu superior repreendeu-o, porque isso importava desrespeito pela Palavra de Deus. Ora um dia que os frades estavam no refeitório, entra um burrinho que fugira do curral. Os frades alvoroçados tentaram afugentar o animal. Diz o nosso frade com muita calma : ‘E ele veio para os seus e os seus não o receberam’ – eram palavras do evangelho de S. João. Mas o nosso MM, quando lhe dava a gana tinha saídas também bem mordazes. O então Reitor do Seminário de Rachol, um sacerdote de valor, era um candidato episcopável a uma diocese que se criara em Angola. Mas a escolha recaiu não no Reitor de Rachol, mas no Reitor do Seminário Menor de Goa. Um amigo meu sabendo que MM não simpatisava muito com o Reitor de Rachol , e só para o picar, manda-lhe esta provocação : MM, então o Reitor de Rachol não foi escolhido para Bispo de Sá de Bandeira ? – Responde MM: – ‘E verdade. Um foi para Sá de Bandeira . Outro ficou com a bandeira da Sé’. É que o Reitor de Rachol teve de se contentar com o cargo de Deão da Sé de Goa, já na altura uma dignidade sem prestígio antigo. E há mais uma de que fui testemunha presencial: houve um tempo em que talvez por as verbas destinadas ao Seminário terem sido reduzidas, talvez por outra causa, a alimentação no Seminário para o pessoal deixou a desejar e correu esta notícia entre o clero. Entretanto , o Reitor do Seminário fizera bemfeitorias nas instalações , como das casas-de-banho, sanitários com autoclismo etc. Num grupo de neo-sacerdotes e alunos, estando no meio deles MM, um jovem seminarista gabou a modernização feita pelo Reitor de Rachol. Eis o diálogo que eu presenciei:
Diz o seminarista: – Sabe MM ? As retretes agora são modernas com autoclismo, sanitas … Foi o reitor que mandou fazer isto tudo.
Responde MM em concani salsetano, torcendo o lábio em tom sarcástico:
– ‘Arê, tumi katat kitem ani agtat itlem ?! (= Ena pá, vocês comem tão pouco e cag… tanto?!)

Leopoldo da Rocha

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